
A frase do deputado Rui Falc�o, ex-presidente do PT, foi cunhada para a disputa pol�tica, mas concentra uma tese. Ele est� dizendo que o programa econ�mico liberal � insepar�vel do autoritarismo pol�tico. Guedes, que tirou o AI-5 para dan�ar, confere verossimilhan�a � acusa��o. O governo �, realmente, um s�?
Marilena Chau� inscreve a tese de Falc�o numa narrativa hist�rica. Dirigindo-se, em agosto, � plateia de um debate preparat�rio ao 7º Congresso do PT, estabeleceu um nexo ousado: "O neoliberalismo n�o � apenas uma muta��o hist�rica do capitalismo. Ele � a nova forma do totalitarismo. N�s estamos acostumados a encarar o totalitarismo na figura de um l�der de massas, o autocrata. Eles desapareceram. O discurso do �dio agora est� sob controle do pr�prio sistema que rege esses governos. A efic�cia desse novo totalitarismo � a sua invisibilidade".
Revisitadas hoje, depois da ades�o de Guedes �s invoca��es autorit�rias do n�cleo bolsonarista, suas palavras fazem sentido?
Desconte-se a ligeireza conceitual. Traduza-se "neoliberalismo", um tropo ritual da esquerda, por pol�ticas liberais. Para n�o queimar no fogo da paix�o ideol�gica os textos cl�ssicos de Arendt e Lefort (este, mentor de Chau�), substitua-se "totalitarismo" por "autoritarismo". Ser� verdade que, para ser liberal, o capitalismo precisa suprimir a democracia?
Minha resposta � irrelevante. O que importa � a resposta dos pr�prios liberais. No rescaldo da pol�mica sobre o AI-5, Guedes tentou consertar o estrago propondo que se pratique uma "democracia respons�vel". Ficou pior. A adjetiva��o da democracia remete a uma tradi��o autorit�ria que se estende de Salazar ("democracia org�nica") a Orb�n ("democracia iliberal"), passando por Erdogan ("democracia conservadora") e Putin ("democracia soberana"). A quest�o n�o � acad�mica: os liberais brasileiros est�o dispostos a seguir a trilha de Bolsonaro?
Na doutrina liberal, a liberdade pol�tica � insepar�vel da liberdade econ�mica. Mas os �cones do liberalismo do s�culo 20 flertaram com a cis�o. Na sua segunda visita ao Chile de Pinochet, em 1981, Friedrich Hayek afirmou preferir uma "ditadura liberal" a um "governo democr�tico desprovido de liberalismo". Disse, ainda, que "uma ditadura pode ser um sistema necess�rio durante um per�odo de transi��o".
Milton Friedman tamb�m assessorou Pinochet – e, mais tarde, defendendo-se das cr�ticas, sugeriu que, gra�as ao programa liberal adotado pelo regime, o Chile acabou se reencontrando com a democracia.Friedman visitou a China em 1980, entre uma e outra passagem pelo Chile, e voltou em 1988, oferecendo conselhos a Deng Xiaoping e Zhao Ziang. Como Hayek, ele imaginava que a liberdade nasce nos bastidores da economia, difundindo-se eventualmente (naturalmente?) para o palco da pol�tica. Nessa cis�o conceitual encontra-se a fresta para a defesa da "ditadura transit�ria" – e, talvez, de uma perene democracia adjetivada. Guedes bebe nas fontes de um liberalismo inseguro sobre o valor da liberdade pol�tica.
A sequ�ncia come�ou antes – repito: antes!– de Lula deixar a cadeia. Partiu de um comando de Olavo de Carvalho, que clamou pelo "fechamento" dos "partidos ligados ao Foro de S�o Paulo".Da�, Jair Bolsonaro mencionou as manifesta��es chilenas como motivo para convocar os militares �s ruas e publicou o c�lebre v�deo das hienas. Finalmente, Eduardo Bolsonaro implorou por um "novo AI-5". O n�cleo do governo n�o teme o espectro de protestos mas, pelo contr�rio, torce por sua materializa��o, gerando o �libi para uma aventura subversiva.
� nessa encruzilhada que se encontram os liberais brasileiros. Guedes sonha com uma "ditadura transit�ria"? O governo � mesmo um s�?