
Fernando Haddad assina coluna na Folha de S. Paulo, mas terceiriza a assinatura de cartas que escreve ao Painel do Leitor. Na cartinha dirigida a mim (13/1), Nunzio Haddad Briguglio simula n�o entender o que escrevi (em 11/1), desafiando-me a exibir um caso de inger�ncia do MEC na sele��o de livros did�ticos para a compra p�blica federal. Ofere�o-lhe duas respostas: 1) Sob os governos do PT, o MEC interferiu em todos os processos de sele��o; 2) At� onde sei, o MEC nunca vetou expl�cita e diretamente um livro espec�fico.
O truque da cartinha firmada por intermedi�rio tem finalidade �bvia: dependendo das circunst�ncias, Haddad pode assumir ou renegar a responsabilidade pelo texto. Na coluna, descrevi a estrat�gia pela qual, indiretamente, o MEC passou a “esculpir as narrativas pedag�gicas”. Expliquei que os agentes da sele��o s�o comiss�es universit�rias de “especialistas” colonizadas por professores-ativistas. Como no caso prosaico da cartinha, a intermedia��o desempenha seu papel, isentando o governo da fun��o de promover a censura ideol�gica direta. Nunzio Briguglio, um jornalista experiente, sabe ler –mas ganha para escrever o que lhe solicitam.
A natureza indireta da interfer�ncia do MEC n�o a tornou menos contundente. No alvorecer da “era lulopetista”, em mar�o de 2004, um parecer do Conselho Nacional de Educa��o (CNE) estabeleceu uma s�rie de “princ�pios” a serem seguidos pelas escolas, entre os quais “o fortalecimento de identidades e de direitos”. Segundo o texto, tal princ�pio “deve orientar para o esclarecimento a respeito de equ�vocos quanto a uma identidade humana universal”. A�, na linguagem herm�tica t�pica das burocracias, encontra-se a semente de um programa pol�tico-pedag�gico.
O artigo 1º da Declara��o Universal dos Direitos Humanos proclama que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O parecer � a nega��o direta da Declara��o de 1948. A rejei��o da “identidade humana universal” forma a plataforma de uma pedagogia de identidades singulares, “culturais” ou “raciais” – e cria o argumento pol�tico e legal para o veto aos livros inspirados pela universalidade dos direitos humanos. A partir do parecer, o MEC publicou livros, resolu��es e provas do Enem que conduzem � repulsa da (mal) denominada "hist�ria ocidental" e dos valores que sustentam as democracias. As comiss�es de "especialistas" plantaram no terreno arado pelo MEC.
O tema dos direitos humanos tem relev�ncia fundamental na educa��o. A “reinterpreta��o” identit�ria dos direitos humanos esvazia-os de conte�do. Dela, nasce o pretexto para classificar as liberdades pol�ticas e individuais como artif�cios “burgueses” ou “liberais”. Da�, num �nico passo, chega-se ao elogio das ditaduras “certas”.
Sob os governos lulopetistas, o MEC rezava no altar dessa estranha “reinterpreta��o” dos direitos humanos. Sob o governo Bolsonaro, o MEC denuncia a reinterpreta��o ideol�gica petista para fazer t�bula rasa dos direitos humanos, preparando sua substitui��o por discursos reacion�rios e anticient�ficos de matriz religiosa. Os dois, por�m, compartilham a ideia de que a sala de aula � terreno leg�timo para a prega��o pol�tica.
A simetria � imperfeita. O MEC de Tarso Genro, Aloizio Mercadante e Haddad entrou nas salas de aula pela intermedia��o dos “especialistas”, num exerc�cio sofisticado de hegemonia. J� o MEC de Weintraub n�o disp�e de intermedi�rios, pois a extrema direita � repudiada quase unanimemente no meio universit�rio. Dessa fraqueza surge o impulso de invadir diretamente as salas de aula, num exerc�cio tosco – e menos eficiente – de autoritarismo.
Nunzio Haddad Briguglio escolheu ignorar o que escrevi, propondo-me um “desafio”. Entendo: a gritaria partid�ria aquece a milit�ncia, abafando o di�logo substancial. Weintraub, penhorado, agradece.