
A quarentena est� para este pobre escriba como o Dreher para Drummond: “Eu n�o devia te dizer, mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo”. Ent�o, vejo as fotos dos policiais de Miami primeiro ajoelhados diante dos manifestantes negros, depois abra�ados a eles como a reconhecer os s�culos de genoc�dio. A exemplo do Vilibaldo Alves nos �ltimos minutos da decis�o de 1971, “l�grimas escorrem em minha face”. Dizia ele, com sua matraca de narrador, “quareeeeeeeenta e cinco minutos!”. Alguma coisa de muito especial est� para ocorrer.
Agora estou diante da imagem de um negro vestido com uma camiseta em cuja estampa se v� Malcolm X. Na Avenida Paulista, ele denuncia um grupo de manifestantes bolsonaristas que carregam a bandeira ucraniana adotada pelos neonazistas de todo o mundo. � Emerson Balboa, lideran�a da Gavi�es da Fiel em Osasco, cidade vizinha a S�o Paulo. Acossado pelos fascistas, ele ergue o punho cerrado. “Aqui � democracia!”, grita. E permanece, imp�vido que nem Muhammad Ali, sereno como o doutor S�crates, cercado como o Reinaldo no Maracan� lotado. Ningu�m encosta a m�o. Alguma coisa est� para acontecer.
Na mesma via, de repente surge em marcha a Gavi�es. “Ih, fodeu, a Galoucura apareceu”, ocorre a este alvinegro treinado no coral do Mineir�o. N�o est�o sozinhos. Est�o acompanhados das organizadas antifascistas do Palmeiras, do Santos e do S�o Paulo. N�o s�o os partidos da esquerda, os sindicatos da CUT, as feministas do Dom Silv�rio. S�o o pov�o, preto e perif�rico, orgulhoso da sua Democracia Corintiana e conscientes da sua pr�pria hist�ria, como povo oprimido e como torcida que se fez na luta contra a ditadura. Quem j� viu de perto, sabe como � assustadora a marcha de uma organizada. “Sai, sai da frente, sai que a Galoucura � minha gente!”.
“DE-MO-CRA-CIA! DE-MO-CRA-CIA!”, grita dessa vez o Bando de Loucos. O brado retumba no Rio de Janeiro, onde torcedores unidos de Flamengo e Fluminense reivindicam as ruas, tomadas pelos supremacistas pardos vestidos de CBF. Uma gente que bem sabemos de que lado estaria se crescidos na Alemanha dos anos 30. Gente hip�crita, meu caro Gil, desprovidas de c�rebro e cora��o. Antes, no Sul, gremistas e colorados j� haviam inaugurado a uni�o sinistra, com o intuito leg�timo de tratar o fascista como ensinam os manuais – na ponta da botina.
Vejo agora os atleticanos descendo a avenida. � a Resist�ncia Alvinegra, a Galo Antifa, velhos pulgas da Galoucura, muitas camisas do Rei. Eu n�o devia dizer, mas essas coisas botam a gente comovido como o diabo. Veja a�, Caio Ribeiro, o Galo se misturando com a pol�tica para defender a sua pr�pria hist�ria – o time do preto e do branco, da toler�ncia racial desde 1908, o time que s� n�o � campe�o do mundo porque seu maior craque ergueu o punho cerrado contra a tortura hoje celebrada pelo presidente genocida.
Ali�s, n�o � “o Galo se misturando com a pol�tica”. � o Galo defendendo seu patrim�nio – a massa de gente que se deseja assassinar pela doen�a, pela fome, pela exclus�o, pelo lucro, pela cor, pelo g�nero, pela orienta��o sexual. “Time de preto, de favelado, mas quando joga o Mineir�o fica lotado!” J� ensinou Wilson das Neves: “O dia em que o morro descer e n�o for carnaval, ningu�m vai ficar pra assistir ao desfile final”.
A prop�sito, este colunista sonhou que o carnaval poderia derrubar Jair Bolsonaro. Depois do suic�dio de reputa��o que o pa�s escolheu praticar, haver�amos de ser salvos pelos foli�es: e se ningu�m voltasse pra casa na quarta-feira de cinzas, e os blocos parassem a economia e os b�bados tomassem o poder? A ideia me pareceu a �nica capaz de nos absolver perante o espanto do mundo civilizado sobre o que fomos capazes de fazer com n�s mesmos. Agora que alguma coisa est� para ocorrer, vislumbro arquibaldos e geraldinos subindo a rampa do Planalto a carregar, unidos, o bandeir�o da democracia. “Quem ficar parado vai tomar um t� ligado.”