
A abstin�ncia de Cruzeiro tem me levado a criar rituais curiosos. Um deles institu� ap�s ler sobre a falta de Vitamina D nestes dias de isolamento social. Acordo, passo os olhos pelo manto sagrado na poltrona e vou at� o fundo do apartamento. L� est� a �nica fresta de sol matutino. Abro a janela, como se estivesse rodando a catraca do Mineir�o. Coloco o corpo para fora e solto a voz! Canto o nosso hino por 6+1 vezes, enquanto raios ultravioletas me enchem de vitamina. Tente! Faz bem aos pulm�es, � pele, aos anticorpos e � alma cruzeirense.
Sempre me emociono ao cantar essa m�sica magistral, composta em 1965. Seja nas arquibancadas ou como solista ao lado do varal de roupa. Ela � a obra-prima do saudoso maestro Jadir Ambr�sio. Quando ainda crian�a, sua fam�lia se mudou para Belo Horizonte na d�cada de 1920. Tornou-se um fervoroso palestrino. Trabalhava na capina de ruas. O pouco tempo de sobra dedicava � paix�o pela m�sica. �nico estudante negro do conservat�rio, sofreu com a discrimina��o.
Do trombone ao viol�o e � poesia, Jadir tornou-se um dos maiores m�sicos de uma Belo Horizonte bo�mia, azul e estrelada. Ap�s as noites de seresta, entre as idas ao estadinho do Barro Preto, viu o seu Palestra se alcunhar Cruzeiro.
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Nos idos de 1940, Pedro Vianna dedilhava o piano com a mesma maestria de um Niginho Fantoni conduzindo a bola. Por algumas vezes, dividiu o palco do cabar� Montanh�s Dancing, no Centro da cidade, com m�sicos geniais. Entre eles, Jadir Ambr�sio. Ao fim do expediente, � meia-noite, o pianista tirava o cal��o da mochila, descia at� a linha de trem e corria quil�metros at� o Bairro Calafate. Era seu treino para o segundo emprego. Pedro tentava a sorte atuando como jogador do Cruzeiro.
Nem fama e tampouco dinheiro. Naquele tempo, futebol n�o pagava conta. No m�ximo, um pr�mio, como o guarda-roupas doado por um comerciante ao escrete ap�s uma vit�ria. Brilho e vil metal para Pedro s� mesmo com a m�sica. Por d�cadas, tocou na Casa do Baile, na Pampulha, onde sempre recebia o cumprimento de um frequentador ilustre, cruzeirense e amante da m�sica Juscelino Kubitschek.
A fam�lia do pianista de cora��o celeste crescia. E, quem nascia, recebia uma camisa azul de estrelas bordadas. Batismo era algo sagrado. Assim foi em 1969, quando veio ao mundo o neto Jo�o. O menino cresceu e tornou-se companheiro do av�. Fosse para lhe escutar ao piano ou para ouvir os relatos dos tempos de Cruzeiro. Assim, as duas paix�es rompiam gera��es.
Em 1977, V� Pedro e Jo�o assistiram atarantados ao azar�o Cruzeiro aplicar 3 a 0 sobre o favorito Atl�tico de Lourdes. O garoto comemorava seu primeiro t�tulo. Deixou o Mineir�o revivendo cada detalhe dos gols do uruguaio “REIvetria”. Apertando a m�o do av�, foi cantarolando o nosso hino. Existia sim um grande time na cidade, que morava dentro do cora��o de Jo�o, Pedro e Jadir.
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Belo Horizonte est� em sil�ncio. Jo�o veste sua camisa do Cruzeiro. Busca na mem�ria o dia em que contou a V� Pedro o desejo de seguir a carreira de m�sico. Pega o trompete, ajeita o chap�u � cabe�a e desce � rua vazia.
A pandemia de COVID-19 e a cidade enclausurada. Desde ent�o, o m�sico cruzeirense Jo�o escolhe uma esquina, saca o instrumento e oferece m�sica �s pessoas nos pr�dios. Cadenciadas pelas melodias, as janelas v�o se enchendo como o Mineir�o em dia de Cruzeiro. O som baila como drible de um ponta faceiro. O �ltimo acorde traz o cent�simo de segundo silencioso do pr�-gol. Uma explos�o de aplausos. Jo�o Vianna tem feito da m�sica o seu ritual di�rio de dizer a todos: “Vai passar”.
Lembrei-me dele hoje, na minha dose de Vitamina D � janela. Senti vontade de olhar para a rua e v�-lo l� embaixo. Camisa azul com as cinco estrelas no peito, sacando o trompete e enchendo a rua com o hino que o maestro, negro e palestrino Jadir Ambr�sio nos ensinou a amar. Se acontecesse, eu fecharia os olhos e me confortaria: “Ou�a. Essa falta de Cruzeiro vai passar”.