Tempo que n�o passa

Carol Melga�o - Atriz
S�o Paulo, 8 de abril de 2020. Noite de lua cheia.
Estou em casa desde o dia 15 de mar�o. Sa� tr�s vezes para ir ao mercado, tomando todas as precau��es exigidas para n�o me/te contagiar. N�o sei o qu�o interessante pode parecer o meu di�rio para pessoas que, assim como eu, est�o num lugar de privil�gio. Talvez voc�s quisessem ouvir algo com final feliz, como os contos que n�s, mulheres, crescemos lendo e ouvindo. Neste caso, n�o h� final ainda. E estou s� no come�o, quase engatinhando como um beb� que por conta de sua condi��o enxerga o mundo por outra perspectiva.
Isso pode ser bom. Para caminhar, precisamos passar por todos esses processos, mas, para isso, precisamos de exemplos e incentivo. H� poucas horas, um senhor tocou meu interfone vestido com uniforme de gari, crach� e rodeado por colegas uniformizados. Atendi e ele pediu a caixinha de P�scoa. Eu disse que j� havia contribu�do no s�bado passado, e ele, sem pestanejar, falou que era pra turma do lixo recicl�vel que passa �s quartas-feiras. Entrei em casa, perguntei se algu�m tinha algum (ningu�m tinha em esp�cie), fui at� o cofrinho da Frida Kahlo que minha m�e me deu em minha �ltima ida a BH e catei R$ 15 em moedas. Coloquei tudo num saco e desci as escadas para entregar o dinheiro para o lixeiro. No segundo em que passava a sacola pelo port�o, com medo de tocar o homem, meu vizinho gritou: “Carol, isso � golpe”. J� era tarde. E era golpe. No cofrinho est� escrito: “Onde n�o puderes amar, n�o te demores”. E assim, sem demorar, ele se foi.
Estou sentindo tudo mais r�pido e mais intenso, as dores, c�licas, ressacas, ansiedades, panela�os e ins�nias. O dia parece ter menos horas, mas isso contradiz a famosa frase “o que � bom dura pouco”. Ent�o est� sendo bom? N�o sei. E � bom pra quem, n�?
Quarentena, durante a quaresma, 40 linhas, 40 caracteres, 40 graus de febre. Dois mil e vinte. 20+20 = 40. Tempo que n�o passa, gente que n�o volta, terra que n�o gira. Mas sempre me falaram que o mundo d� voltas.
Hoje n�o precisei ligar o aplicativo de barulho de chuva e p�ssaros pra tentar dormir. Eles voltaram. Hoje n�o precisei colocar filtro na foto postada, as cores vibravam. Hoje n�o precisei inventar uma desculpa pra n�o te ver e para n�o me exercitar, apenas n�o te vi e me exercitei. Hoje acordei ao meio-dia. E o que voc� tem a ver com isso?
Entre cursos n�o acabados e a romantiza��o de um momento duro, avalio a facilidade de julgar o outro. Dia desses, acompanhei o stories do Instagram de um amigo. Ele relatou que saiu para dar uma corrida, pensou num lugar que fosse seguro, entrou em seu carro e foi pra perto do Parque das Mangabeiras. Chegando pr�ximo da Pra�a do Papa, chocado (em suas palavras), filmou as centenas de pessoas que ali espaireciam e faziam exerc�cios ao ar livre, como se nada estivesse acontecendo. Mas estava.
Assim como ele, as pessoas sa�ram de casa e procuraram um lugar que teoricamente poderia estar vazio. S� que, me parece, chegar a este lugar vazio � muito mais simples, � s� n�o sair de casa e correr para si mesmo. Ainda existe uma longa caminhada para n�s, como humanidade, especialmente pela desigualdade social e pensamentos meritocratas de privilegiados. No meu mundo novo, que n�o � novo e nem mundo, fico quebrando a cabe�a para entender como muitos pensam e agem.
Abri agora um dos meus livros favoritos: Livro do desassossego, de Fernando Pessoa. Pelas coincid�ncias loucas da vida, a p�gina aberta foi a 297, com o seguinte pensamento:
“307. Est�tica do Desalento.
J� que n�o podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de n�o poder extrair beleza da vida. Fa�amos da nossa fal�ncia uma vit�ria, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiesc�ncia espiritual.
Se a vida (n�o) nos deu mais do que uma cela de reclus�o, fa�amos por ornament�-la, ainda que mais n�o seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.
Como todo sonhador, senti sempre que o meu mist�rio era criar. Como nunca soube fazer um esfor�o ou ativar uma inten��o, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria poder fazer.”
Sonhemos (...)
O resto � sil�ncio.