Di�rio da quarentena
sobre o presente
paulo azevedo
ator

Meu pai me pediu para escrever uma reda��o sobre toda essa mudan�a no mundo. Talvez porque eu tenha bastante energia pra gastar, ainda mais neste momento de distanciamento social. S� entendi isso, de verdade, quando notei que nossos passeios no parque, no Minhoc�o nunca chegavam... Eram o auge da minha semana!
Hoje � s�bado ou segunda? Que horas s�o? Essas “conven��es” ficaram t�o relativas, n�? Em troca, ganhei a presen�a dele 24 horas! Sou uma privilegiada: tenho duas casas e estou cercada de aten��o o tempo todo, com mimos, cafun�s... Isso n�o tem pre�o. Ele nunca teve tempo nem pra ele. Por qu�?
Acho que a mudan�a come�ou desde que meu pai voltou �s pressas da viagem a Buenos Aires com vov� Antonino e vov� Nilza, que comemorava seus 77 anos. “Um susto! O governo argentino decretou quarentena para todos os brasileiros e chilenos que estavam no pa�s”, peguei, de orelhada, quando ele, ainda impactado, falava no celular. “E voltamos �s pressas, depois de ficar isolados no quarto de hotel.”
De l� pra c�, a sensa��o de controle que ele tinha, cheio de futuro, sumiu. Existiu alguma vez? Tantos planejamentos de projetos no audiovisual e nas artes c�nicas, consultorias e eventos programados para apresentar, entrevistas para o seu podcast almasculina – sim, meu pai � artista e comunicador! Tudo cancelado, sem nova data prevista.
Um ter�o do mundo est� em casa. Quase tudo parado. Menos a natureza, que dava sinais h� tempos de que os humanos tomavam um rumo que n�o estava bom. Em poucas semanas, os chineses conseguem ver as estrelas; �guas claras em Veneza; sil�ncio e c�u limpo em S�o Paulo; a Terra diminuiu os tremores... E at� abelhas apareceram na cozinha aqui de casa, pode?
No meio disso, foi anivers�rio do papai. Parecia ser o mais triste da vida, mas ele passou o dia na rede da sala recebendo mensagens e chamadas em v�deo de tanta gente! Tava emocionado com tanto afeto. Amor n�o tem dist�ncia. Teve at� uma festa a fantasia com amigos de v�rias partes, juntos na tela do computador, brindando � vida. Isso encheu o cora��o dele de leveza.
De manh�, ele trocou o celular e o computador pelo tapetinho azul: se ajoelha, com a coluna ereta, em sil�ncio, por alguns minutos. � bom. Bonito de ver. Faz bem pra ele. E pra mim tamb�m, que fico ao lado sentindo a respira��o acalmar a ansiedade. �s vezes, tamb�m o acompanho nas leituras, filmes e s�ries. Acredita que s� agora ele conseguiu ler o livro que comprou em 2012?
Claro, d� pra notar a preocupa��o com a sa�de da fam�lia e dos amigos, muitos deles sozinhos em suas casas. A ang�stia de ver os colegas artistas que tiveram espet�culos, filmes, s�ries e novelas interrompidos. Sem contar a apreens�o com a grande parte da popula��o sem acesso � sa�de e informa��o, desamparada pela falta de lideran�a dos nossos governantes. H� semanas me assusto, todos os dias, �s oito da noite, com os gritos e o barulho das panelas nas janelas da vizi- nhan�a. � um bairro com moradores que parecem bem cientes da gravidade da situa��o. Est�o reclusos, mas pedem a��o urgente!
�, �s vezes, ele fala comigo: “Voc� tem me ensinado muito, Fia. Papai tava cansado de estar cansado. E voc� est� presente, o tempo todo, em tudo o que faz. Comer, � s� comer. Brincar, hora de brincar. Dormir? Sim! Por que n�o? E voc� apaga. Vivendo o agora – � s� o que a gente tem, n�, minha Broa? Aonde chegar�amos daquele jeito? Pra onde a gente tava correndo? A gente fica dias, semanas, meses, anos... d�cadas fazendo e planejando coisas e coisas, sem tempo de desfrutar da vida. E aquele desejado momento que nunca chegava?”.
Parece que agora � a nossa chance. Tomar consci�ncia. Ter menos: correria, consumo, depress�o, viol�ncia entre os homens e contra a natureza. Mais: tempo, afetos, qualidade na presen�a e simplicidade no viver. Ser� que a gente vai aprender? Sairemos melhores dessa?
Mesmo reduzidos, meus passeios para o xixi e coc� (s� fa�o na rua!) continuam. Meu pai usa um neg�cio na cara pra tampar a boca e o nariz. Quase come�o a latir, de t�o engra�ado que ele fica! Mas parece bem importante. N�o � inven��o de moda s� dele. Tem muita gente usando nas ruas aqui. E volto pra casa pra lavar bem minhas patas pra curtir mais um dia com meus pais. Com muita �gua, sab�o e �lcool em gel. Meu presente. Nosso presente. Pra viver cada passo de um novo mundo que est� por vir.
Meu nome � Tarsila.
Meu pai � o Paulo Azevedo, ator, comunicador e idealizador do podcast almasculina.
