DI�RIO DA QUARENTENA

Xeque-mate
M�rcia Charnizon
Fot�grafa
Amigo, em que dia da quarentena estamos? N�o sou de di�rios. Mas vou te contar sobre ontem. Abri o port�o da minha garagem e me deparei com uma festa. Sim, uma festa. Ultrapassaram todos os limites e entraram, sem a minha permiss�o, no jardim.
Comecei a suar de nervoso. Escorria das minhas m�os um l�quido transparente que cheirava a �lcool em gel. Ainda n�o uso �culos, mas nessa hora, por pura vergonha, busquei meus �culos escuros dentro da bolsa. E vi. Meu jardim estava estranho.
A multid�o, aglomerada, dan�ava descompassada com headphones nos ouvidos. N�o era um encontro de pessoas m�s, nem de pessoas boas. Eram s� pessoas. Olhei para o lado. Sentada na minha varanda estava uma senhora, na casa dos seus 80, isolada e observando tudo em sil�ncio. Cheguei perto e me posicionei sob sua pele, mais pela curiosidade de sentir sua dor. Ardeu, como uma ferida que est� sendo limpa. Ela me disse, tristonha:
– E voc� n�o sabia?
Mudei de assunto e respondi que estava em isolamento social. Ela n�o disse nada, s� apontou para minha cozinha. N�o acreditei! Os convidados n�o cuidaram do pr�prio lixo e vermes tomaram conta de toda a bancada. Fiquei ali, paralisada, pensando em como me ver livre daquele nojo que me subia � cabe�a. E ent�o percebi, durante esse tempo em suspens�o, algo em que nunca tinha prestado aten��o. Minha casa estava dentro de uma bolha. Olhei com mais aten��o e, na verdade, cada pessoa l� no jardim da festa tamb�m tinha uma bolha � sua volta. Eu mesma estava embolhada, tamb�m a velhinha.
Tirei os �culos, sentei, cansada, e senti o golpe! Aquela festa esquisita era para eu perder o ju�zo. S� podia!
A senhorinha na varanda, assistindo � minha afli��o, falou com a tranquilidade de quem n�o se importa mais com o ju�zo nem com o tempo:
– Calma, minha filha, isso n�o � nenhum pesadelo. Bolhas sempre existiram. Vermes tamb�m.
Levantei-me �s 7h com aquela sensa��o pesada de quem sonhou acordada a noite inteira e busquei pelas �ltimas not�cias. Tive a sensa��o de ter sa�do de um sonho e acordado num pesadelo, como a velhinha tinha me soprado na madrugada. A festa dos infernos, numa provoca��o bonita e dolorosa, me faz pensar no passo lento que a hist�ria produz enquanto a gente vive e sonha. Somos todos testemunhas da hist�ria, apreendendo os fatos a partir das nossas pr�prias bolhas. “Elas sempre existiram”... Mais um sopro s�bio daquela velha de guerra.
Levantei com a necessidade de fincar, de uma vez por todas, esses meus p�s na areia movedi�a e enxergar bolhas que antes me eram invis�veis. Muitas delas, inclusive, s�o necess�rias para me ajudar com os vermes que se aproximam, principalmente bolhinhas perfumadas de conhecimento, solidariedade e arte.
Para finalizar, meu querido amigo t�o di�rio, estamos no olho do furac�o, travando uma guerra contra o v�rus que parece se fortalecer quando em simbiose com o individualismo e suas imensas desigualdades sociais, fake news e ignor�ncia.
Do alto da montanha privilegiada onde vivo, como fot�grafa e empres�ria, meu sonho � poder tirar os headphones e me imaginar na pele de outros. Fazer doa��es, ajudar quem precisa s�o sempre a��es necess�rias de socorro, mas n�o posso me esquecer do que est� em jogo: as mudan�as estruturais. Esse � o xeque-mate que a pandemia lan�a no tabuleiro.
As transforma��es acontecem pelas pol�ticas p�blicas, passam pelo voto, pelas escolhas da educa��o, sa�de, arte e ci�ncia como dispositivos sagrados. Fora desse caminho, manteremos, de forma assustadora, as bolhas individualistas. E isso, sim, � um pesadelo que a quarentena desnuda e me joga na cara. Ser� mesmo que mudaremos?
Me resta levantar um brinde � utopia, necess�ria. Em videoconfer�ncia, com os amigos.