
Dizem que as pessoas se acostumam com tudo. Isso pode ser verdadeiro pra n�s, que temos uma vida minimamente estruturada. Mas certamente n�o � verdadeiro pra quem tem pouco ou quase nada. N�o se pode exigir que um trabalhador permane�a em casa, trancado com sua fam�lia, se n�o se oferecer a ele a possibilidade de uma subsist�ncia digna. Isso se n�o falarmos das milhares de pessoas em situa��o de rua, que simplesmente n�o t�m onde tentar se esconder do inimigo.
Ent�o, acostumar-se com a priva��o da liberdade, num ambiente organizado, ainda mais sabendo que essa restri��o n�o nos � imposta de forma violenta ou autorit�ria, mas como pressuposto b�sico para nada mais nada menos do que continuar a viver, n�o pode nem de longe constituir um flagelo.
Entocados, com os “olhos brilhantes como os da fera que defende a entrada do seu fojo” (verso do genial poeta mineiro Ascanio Lopes Quatorzevoltas, do movimento modernista Verde, de Cataguases, morto, em 1929, com apenas 23 anos de idade), esperamos o dia em que a cidade desperte e a peste tenha simplesmente desaparecido, como num passe de m�gica.
Enquanto isso, tentamos nos adaptar a uma outra forma de vida, onde o sup�rfluo ocupe seu verdadeiro lugar no compartimento das coisas que n�o servem para nada.
E talvez nossa maior descoberta tenha sido a de que a arte n�o faz parte da categoria dos produtos prescind�veis.
Ando pelo apartamento, no tempo que j� n�o me falta depois do trabalho remoto, e vou catando ao acaso as obras que foram listadas atrav�s dos anos e que jamais chegaram ao topo das consideradas inadi�veis: o livro perdido de Meruane, o romance p�stumo de Bola�o, a pe�a inacabada de Pirandello, os textos escolhidos de Marighella.
Depois, passo �s estantes de filmes e me pergunto a raz�o de ter tardado tanto a (re)v�-los. L� est�o Varda, Resnais, Truffaut, Scola, todos empilhados numa espera injustific�vel.
N�o satisfeito, procuro na web pelas pe�as a que n�o assisti, concertos que perdi, museus que nunca visitei, mas n�o com o prop�sito de v�-los todos e urgentemente e, sim, de escolh�-los a dedo, pacientemente, para quando e se quiser.
Chego, ent�o, � conclus�o de que o tempo � um bem t�o precioso quanto a vida, porque afinal ele se confunde com a exist�ncia. Desperdi��-lo, no fundo, � atentar contra nossa pr�pria humanidade.
Se a pandemia nos deixar um legado, ser� o de que � necess�ria uma outra forma de exist�ncia, ou melhor, de coexist�ncia, onde viver n�o seja s� arranjar formas de passar o tempo, mas, sim, de reinvent�-lo. Um tempo em que o tempo seja uma d�diva e n�o uma afli��o e que todos, e n�o somente alguns, o tenham. Um tempo, enfim, de ressignifica��o.