Nunca fui um sujeito organizado. Nunca tive “uma cabe�a bem mobiliada”, como diz um amigo baiano sobre as pessoas certinhas. Agora mesmo, depois de escrever essas duas linhas precedentes, j� interrompi a escrita dessa cr�nica por tr�s vezes. A primeira para atender o telefone, a segunda para apreciar no WhatsApp um v�deo porn� (eles t�m se multiplicado na pandemia), a terceira para acudir meu gato que reclamou n�o ter gr�os no seu vasilhame aqui do escrit�rio. O telefonema merece registro: era o dentista informando que recebeu a tomografia que fiz h� dois dias e, gra�as a Deus, n�o tenho nada. Mas sua informa��o acess�ria � espantosa: nos �ltimos tr�s meses, quadruplicaram os casos de trincamento de dentes. Temos comido mais e mordido com raiva. Bala perdida da pandemia.
Sempre trabalhei em empresas muito bem organizadas, mas poucas vezes compartilhei com a minha secret�ria os hor�rios a cumprir. Era a cabe�a mal mobiliada. Me ferrei, ati�a-me a lembran�a um volume de Carlos Drummond � minha frente: perdi a sess�o da C�mara dos Deputados em homenagem ao centen�rio do poeta. Mineiro perde a poesia, mas n�o perde o trem: jamais faltei a uma reuni�o de trabalho. Grandes coisas! Era o m�nimo, seu Pedrominha! Minha biblioteca � desorganizada. O E�a est� ao lado de um livro de bot�nica. Tem gente que organiza at� adega: portugu�s pra c�, italiano pra l�, franc�s na prateleira de baixo. A minha assemelha-se a uma feira de Istambul, e a primeira garrafa que agarro � a que vai pro papo. O guarda-roupa n�o, � organizadinho pelas outras duas m�os que h� mais de 40 anos tenho grudado no meu corpo, como a deusa hindu. Jamais abrirei o gaveteiro dos pijamas se quero vestir uma bermuda.
J� os pap�is pessoais, ah! Sabe aquela certid�o de casamento que voc� precisa dela com urg�ncia para selar a venda do apart-hotel no Bairro dos Funcion�rios, desvalorizado em 50% pela recess�o da pandemia? Pois � ela mesma. Que aborrecimento a solicita��o ao cart�rio do Rio! E voc� solta improp�rios para todo lado, mas nunca se culpa da cabe�a mal mobiliada que o faz esquecer que o documento est� guardadinho na pasta verde.
De modo que minha desorganiza��o n�o fez da pandemia um pandem�nio. Eu estava bem equipado. A peste me poupou at� de aborrecidas a��es cotidianas, como ir ao mercado, � padaria, � farm�cia. O delivery cuida do p�o de cada dia e da pasta dental. O computador, o smartphone, o laptop tornaram-se o centro da vida para mais de 1 bilh�o e 200 mil pessoas, li outro dia. N�o preciso mais ir de terno e gravata �s reparti��es de Bras�lia para cuidar do interesse dos meus chefes: falo com os burocratas por videoconfer�ncia no meu home office.
O aquartelamento obrigat�rio para evitar as consequ�ncias da terceira guerra mundial, gerador do sentimento de claustrofobia, pouco me afetou: eu j� havia abolido as flanadas noturnas, nas quais uma cabe�a mal mobiliada pode causar problemas na vida privada, como me tem mostrado a leitura do s�bio Balzac na sua Com�dia humana, que adquiri num sebo para enfrentar o longo inverno do v�rus. Sem flana��es, obtive a harmonia dom�stica e, tendo feito de casa meu pr�prio bar, economizei.
Desgra�adamente, milhares de brasileiros n�o vivem a boa vida deste cronista. Eles se arriscam diariamente no transporte lotado, na conviv�ncia no trabalho e no interc�mbio afetivo com suas fam�lias. Na falta de uma vacina e de hospitais acolhedores, e tamb�m na aus�ncia de um l�der que lhes d� esperan�a – porque esperan�a � um rem�dio muito bom –, tor�o para n�o lhes faltar um S�o Francisco de Assis, o protetor dos humildes.
Dizem os fil�sofos, que pululam agora na televis�o (tanto quanto os v�deos porn�s nas redes sociais), que o mundo ser� outro ap�s a pandemia. O mundo est� mudando muito mesmo. J� foi novo a partir de 2001, quando apareceu o v�rus do terrorismo planet�rio. O s�culo que ent�o se inaugurava acabou na destrui��o das Torres G�meas de Nova York. E o s�culo que se iniciou com esse novo mundo sob o medo do terrorismo durou apenas 19 anos. Terminou no carnaval de 2020, dizem os infectologistas. Que venha ent�o o segundo mundo novo em 20 anos, sem terrorismo e sem o v�rus. Am�m.