Di�rio da quarentena
Di�rio da casa assassinada
Bruna Kalil Othero
mestra em literatura brasileira

Sinto que vivi toda a vida � espera de uma cat�strofe. Agora ela chegou.
dia 0 ao dia 10
esquecer que tenho corpo. n�o pensar, n�o racionalizar. evitar as not�cias.
a pia da cozinha quebrou. escrevi um poema e hidratei o cabelo.
fiz terapia on-line e p�o. montei a pirocona da Tarsila no quebra-cabe�a. vi Os normais. e agora vou ler L�cio Cardoso.
a Hilda me disse que sou abstrata. que n�o reclamo exatamente do que me incomoda, mas falo assim: barulho. em vez de dizer: latido do cachorro, vozes da casa, da rua.
dia 11 ao dia 40
sinto f�ria, raiva, da ignor�ncia e da prepot�ncia. tacar fogo em tudo inclusive em mim etc.
hoje � dia mundial da poesia. e tamb�m anivers�rio do presidente. n�o se pode ter tudo.
n�o estou conseguindo escrever nada. l� fora todos morrem.
a doutora disse que a tens�o que sempre pensei inerente ao meu corpo e � minha pr�pria identidade �, na verdade, uma doen�a.
sinto saudades da rua. Paulo disse que � a parte principal da cidade. concordo, melanc�lica, cavando a minha p� fundo na terra.
dia 41 ao dia 60
decidi que vou escrever meu testamento e instru��es para como quero que seja o
meu vel�rio.
depois de quarenta dias, me toquei pela primeira vez. bendita � a tranca no quarto, posso ter tes�o a qualquer hora. Virginia Woolf j� sabia.
penso que tudo seria mais f�cil se eu fosse um personagem. a morte como recurso narrativo faz sentido. mas como pol�tica p�blica n�o.
dia 19 � anivers�rio da Lygia. comprei
uma faca pra ela.
tempo. agora mais que nunca
um conceito abstrato.
escrevo por recomenda��o m�dica.
dia 61 ao dia 80
a pior coisa � se sentir exilada na pr�pria casa. na pr�pria pele.
chorei sozinha no banheiro. primeiro no ch�o, depois no banho. j� faz parte da rotina.
�s vezes sinto que � dif�cil pra Lygia – me amar.
a terapeuta me disse que sou cruel demais comigo mesma. como n�o ser?
sair do campo de batalha. s� isso que eu queria.
O CORPO � UMA BOMBA REL�GIO.
cansada. com medo. produzindo para n�o pensar. o artista brasileiro cria obras com uma arma apontada para a sua cabe�a. � compreens�vel que no papel haja sangue.
antes eu via v�rios futuros poss�veis, com clareza. hoje n�o consigo pensar nem no amanh�.
dia 81 ao dia de hoje
estar viva. respirar. existir. dar conta
desse milagre.
me indago sempre: qual � o desastre? pensei que era a pandemia. mas n�o �.
nossa cat�strofe � o Brasil – casa eternamente assassinada.