Di�rio da quarentena
Viver � um rasgar-se e remendar-se
Gui Poulain
Escritor
Na beirada da cama coloquei a folha de costela-de-ad�o num vaso azul. Troquei as folhas de ant�rio que ali passaram as �ltimas semanas. As folhas antigas deram espa�o pra nova, que ocupa o mesmo lugar, de um jeito diferente. As plantas de vaso, na terra, seguem por meses e anos, mas aquelas ali s� algumas semanas. Algumas vezes me fixo em detalhes n�o importantes das coisas. Me pego reparando nos pequenos amassados dos produtos nas prateleiras do supermercado, nas costuras tortas de uma roupa de fast fashion, na din�mica das pessoas entre m�scaras e dist�ncias.
Daqui de casa, me vejo andando pelo passado e refazendo as caminhadas na cabe�a. O que eu mais gosto nessas caminhadas pelo passado � das vezes em que me perdia por ruazinhas por a�. Existem alguns pequenos pr�dios que, de t�o bonitos, eu me pegava decidindo em qual deles moraria – pensando na hipoteticamente generosa situa��o de poder escolher algum � minha revelia.
Num predinho em especial que gostava de admirar sempre tinha a plaquinha de “vende-se” grudada no port�o. Me fazia imaginar que ali morava o Ant�nio, um recifense que usava o verbo aperrear mesmo que por aqui n�o entendessem bem o que ele queria dizer. Logo acima, Joana e Guto tinham decidido se separar – os dois eram muito parecidos, mas absolutamente nenhum deles conseguia suportar o outro desde que foram morar juntos.
Venderam o apartamento para dona Isaura, que, saudosa que s�, encheu a sala de porta-retratos com fotos da fam�lia, cuja metade j� tinha partido deste mundo e a outra metade quase n�o a visitava. O interessante nesse exerc�cio de imaginar a vida ali � perceber o pr�prio passar dela. Passa o tempo, passam os antigos amigos centrifugados pela falta de esfor�o e pela rotina. Passam os amores. E tamb�m passam as dores de amores. A cada vez que olho pras folhas de costela-de-ad�o no vaso, penso no qu�o bonito � acompanhar ali a efemeridade dos ciclos.
Enxergo nas novas folhas verdes aqueles come�os de projetos, a expectativa do novo, o ambiente renovado. Passa semana e vira comodidade. Esque�o que ali repousa o que antes era novidade, lado a lado da minha cabe�a. Um h�bito. Uma rotina. Um dia seca. Algumas vezes, bate uma tristeza daquele ciclo encerrado. Outras vezes, alguma folha antiga ainda tem breve sobrevida quando tiro as secas pra colocar algumas novas.
Hoje, colei um escritinho na beirada do vaso: “Viver � um rasgar-se e remendar-se”, frase de Guimar�es Rosa. A cada nova folha, um novo compasso se inicia. Retiro as secas e penso: como foi bonito. E que bonita a nova vida que ali adentra �.