
Eu contei at� 100.
Depois parei de contar.
Comecei a arrumar a estante e depois parei de arrumar.
Cozinha, banheiro, arm�rio e gin�stica nem pensei em come�ar.
Comecei a ler James Joyce e tamb�m parei sem terminar.
O s�bado ficou parecendo quarta-feira e a quarta-feira n�o ficou parecendo com nada.
As manh�s de abril, as tardes de maio e as noites de junho j� foram todas embora e nem deu pra conversar.
Tanta gente j� foi embora e nem deu pra despedir.
Nessa e em todas as outras l�nguas do mundo.
Existe hoje algu�m pra chorar de saudade, de raiva ou de t�dio.
N�o importa o tamanho da casa nem o que se enxerga da janela.
A praia mais linda ou a montanha mais alta.
N�o importa a cidade.
Nem quanto custou a reforma da sala de visitas.
Ningu�m vai chegar. Nem de surpresa.Nem de combinar.
Quem sempre chega impreterivelmente na minha casa arrumada ou bagun�ada sou eu.
Mesmo sem sair de casa eu sempre chego.
Essa pessoa que eu vejo no espelho do corredor e do banheiro.
O inevit�vel encontro marcado de todos os dias. Comigo mesmo.
Um dia de cada vez, mas todos os dias.
Tempo nublado, de sol, tempo de nada e tanto faz e l� estou eu olhando pra mim.
Eu na quarentena rasgando o calend�rio, pedindo comida, pedindo �gua, pedindo perd�o virtual para os meus pecados t�o reais.
Se antes eu navegava, agora naufrago na internet procurando minha velha opini�o formada sobre tudo.
Sobre quem enche as praias.
Sobre quem toma cerveja no Leblon.
Sobre quem duvida da vacina.
Sobre o bar aberto e a escola fechada.
Quem evita, quem convive.
Quem espirra e quem reclama...
A natureza melhorou nesses dias. Golfinhos apareceram em outros oceanos, passarinhos em outras �rvores, macacos em outras matas.
Dizem que os canais de Veneza ficaram t�o limpos que at� sereias foram vistas por l�.
Mas e por aqui?
O que eu consigo enxergar?
Luz de vela no t�nel com ventania.
Li��o presencial dessa pandemia.
Infelizmente, n�o vou conseguir me transformar em algu�m melhor.
N�o tenho nenhuma lista de habilidades conquistadas neste tempo nublado.
Continuo sem entender o I Ching, flor da ameixeira e tamb�m n�o entendo meu vizinho.
Os livros seguem na estante sem ordem e parecem que v�o continuar dessa forma.
Algumas coisas v�o continuar exatamente dessa forma. Sem ordem.
Como a desordem dos moradores de rua na riqueza da Avenida Paulista.
Como o dinheiro que acaba da noite pro dia.
E do dia pra noite.
Sigo aqui da minha janela do 14º andar. Estou em S�o Paulo, mas poderia estar em S�o Raimundo Nonato, no interior do Piau�.
Tanto faz.
Nenhum espanto.
Sigo contando os dias.
Passamos dos 100.
Cem mil mortes e seguimos contando.
Tanto faz.
Nenhum espanto.