
A mineira Jeane Terra estava preparada para abrir sua maior mostra individual, a quinta. Seria a primeira exposi��o dela na Galeria Simone Cadinelli, no Rio de Janeiro, que a representa. Veio a pandemia e mudou tudo. “Optamos por uma abertura diferente, dividida em tr�s dias em vez de um, para receber o p�blico em hor�rios previamente agendados e sem aglomera��o, priorizando pequenos grupos. Foi uma experi�ncia nova e gratificante, pois pude atender as pessoas com muito mais aten��o”, conta.
Poucos dias depois, a galeria teve de fechar por duas semanas. Reabriu na quarta-feira passada, funciona sob agendamento e seguindo todos os protocolos. Jeane tirou de letra o momento dif�cil. Produziu o material digital da mostra “Escombros, peles, res�duos” e o disponibilizou em seu site – texto curatorial, imagens, cat�logo virtual e tour 3D. A inspira��o veio de Pontal de Atafona, comunidade fluminense engolida pelo mar.
A hist�ria da mineira com o Rio de Janeiro come�ou ap�s a perda de familiares em um acidente. “Precisei me reinventar, vislumbrar outros horizontes e tentar reescrever a minha hist�ria sem essa fam�lia. Resolvi passar uma temporada maior na cidade e recebi o convite da Adriana Varej�o para trabalhar como assistente dela. Acabei ficando”, conta.
Adriana, uma das pintoras mais importantes do pa�s, foi muito importante para a forma��o de Jeane como artista. “Ela foi uma grande escola. Nossa troca di�ria alargou o meu pensamento art�stico. Hoje, Adriana � parte da minha fam�lia, uma pessoa que sempre estar� presente em minha vida.”
O que a levou at� Pontal de Atafona, praia no norte do estado do Rio de Janeiro?
J� tinha uma pesquisa voltada para mem�ria e perdas dentro do apagamento urbano, essas demoli��es de casas para a constru��o de pr�dios, sobre como perdas assim afetavam a hist�ria das pessoas. Tinha passado por esse processo com a demoli��o da casa onde vivi com meus pais, em Belo Horizonte. Fiquei sabendo por uma amiga da cidade que estava sendo engolida pelo mar. Isso tinha propor��o muito maior, era uma cidade em deslocamento, mudando de lugar a partir do avan�o do mar. Era a mem�ria de pelo menos 500 pessoas que haviam perdido suas casas. Comecei a pesquisar na internet e descobri Atafona. Na semana seguinte, peguei o carro e fui parar l�.
A mostra “Escombros, peles, res�duos” �
resultado da resid�ncia art�stica que voc� fez em janeiro de 2020. Mas veio a pandemia...
Vivi momentos muito intensos no in�cio de 2020, durante o per�odo em que passei em Atafona. Foi uma pesquisa que me tocou muito. Queria entender o processo de perda daquelas pessoas. Como era, para elas, ter os sonhos e a cidade tragados pelo mar. Terminando o per�odo em Atafona, voltei para o Rio de Janeiro e me debrucei sobre o processo da exposi��o. Foram meses de muito trabalho. O lockdown veio uma semana antes de as obras sa�rem do ateli�. Foi um momento dif�cil, primeiro porque eu iria viver uma coisa inaugural, passar por uma pandemia e pelo isolamento social, e segundo porque a exposi��o foi t�o aguardada, t�o trabalhada, mas seria guardada por tempo indeterminado. Isso me trouxe ang�stias e mil interroga��es, mas entendi que era o momento de uma pausa de enfrentamento.
Como foi esse processo?
Decidi me debru�ar novamente sobre os trabalhos da exposi��o. Tinha come�ado uma pesquisa com as peles de tinta e a monotipia seca, na exposi��o ter�amos dois trabalhos dessa s�rie. Com o adiamento, eu me debrucei plenamente sobre esse trabalho e ele tomou um corpo maravilhoso. Eu e o Agnaldo Farias, curador da exposi��o, entendemos que a s�rie merecia maior representatividade e, ao final, ela ocupou todo o segundo andar da galeria. O isolamento social volunt�rio foi necess�rio, mas dif�cil. Como artista, senti que ele me fez focar e trabalhar mais, mesmo que emocionalmente minha cabe�a estivesse um turbilh�o.
A destrui��o de Atafona pelo mar � a prova de que a natureza revida as agress�es causadas pelo homem. A pandemia nos obriga a repensar a nossa rela��o com o meio ambiente?
Acredito plenamente nisso. A natureza est� respondendo ao ser humano. A devasta��o que estamos fazendo no planeta tem um pre�o. E ele, de alguma forma, est� gritando, pedindo uma pausa. � imenso o descaso dos l�deres mundiais em rela��o � quest�o ambiental e a muitas outras pautas relacionadas � preserva��o do planeta. Precisamos repensar a nossa rela��o com o meio ambiente e nossos anseios de progresso a qualquer pre�o. Fazemos parte de um ecossistema em desequil�brio causado por n�s mesmos. Temos de batalhar por esse equil�brio. Meu trabalho fala sobre isso. Preservar o planeta � nos preservar.
Passada a pandemia, essa experi�ncia vai influenciar seu processo criativo?
J� est� influenciando. Sou afetada por tudo o que vivo: pelas perdas de pessoas pr�ximas e por todas as novas experi�ncias transformadoras que a pandemia tem trazido. � hora de recalcular rotas, rever valores, repensar nossos espa�os, nossas casas. Entender o valor de estar com nossos familiares, amigos e at� mesmo o valor de um simples abra�o.
Qual � a import�ncia da Escola Guignard para a sua forma��o?
A Escola Guignard � um dos lugares mais especiais de BH para mim. Estudei com a Claudia Renault, com o falecido e querido professor de pintura Pedro Augusto. Minha carreira como artista foi muito marcada por esse come�o em Belo Horizonte. Foi o melhor ponto de partida. Sa� de BH, mas BH est� cravada em minhas veias e pulsa fortemente em mim. Meu trabalho carrega o barroco mineiro em suas entranhas.