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Estado de Minas CORPOS DISSIDENTES

Estridente demais para ser a mulher que sai pela porta dos fundos

S�rie Shrill faz repensar tratamento gordof�bico dado �s mulheres gordas pelo 'medo de ser visto' acompanhado por uma


11/08/2021 06:00 - atualizado 11/08/2021 10:10

(foto: Shrill/HBO Max/Divulgação)
(foto: Shrill/HBO Max/Divulga��o)

 
Fugindo dos estere�tipos da boa mulher, virtuosa, eu nunca fui silenciosa, discreta, misteriosa. Desde crian�a, sou espalhafatosa, escandalosa, falo alto, derrubo coisas, n�o sei chegar em um ambiente e passar despercebida. Entro numa sala e j� derrubo alguma coisa. Assusto com o manequim das lojas. Quase sou atropelada na rua. Estou acostumada com todos os olhares em mim

N�o consigo esquecer de uma vez, h� quase 15 anos, numa coletiva de imprensa no gabinete do prefeito em que eu entrei, derrubei um mapa que estava pendurado num trip�. Pra acalmar, fui beber uma �gua e virei a jarra sobre a mesa de vidro. Perguntas feitas, respostas dadas, fui sair e tropecei na escada. Fiquei de gatinho, agachada, de quatro, no corredor da prefeitura, com todo mundo olhando quem tinha sido a pessoa com mais de 100 kg que tinha estremecido o piso de madeira do pr�dio. 

Essa sou eu e ser discreta n�o � algo que combina comigo. N�o sou o tipo que chega bem arrumada, perfumada e silenciosa. Sou estridente. E, como pode a uma mulher estridente ser pedido que deixe uma casa ap�s uma transa pela porta dos fundos?

A lembran�a da cena n�o � gratuita. Na �ltima semana, assistindo - maratonando, verdade seja dita - a s�rie “Shrill” (Estridente, na tradu��o livre), que tem se popularizado no Brasil ao integrar o cat�logo da rec�m-reformulada HBO MAX, uma das cenas reativou v�rios traumas em mim: ser a mulher gorda que � convidada para transar mas deve deixar o recinto pelos c�modos dos fundos, sem ser vista, sem fazer barulho, sem incomodar, sem expor a vida de quem est� na outra ponta. 

Cont�m spoiler a partir daqui: na s�rie, a personagem Annie Easton, interpretada por Aidy Bryant � uma jornalista �s voltas com o pr�prio trabalho, sonhando em ter uma coluna de sucesso (at� aqui, s� dependo de voc�s, vai! Me deem essa moral) onde possa falar dos temas que lhe atravessam, lidando com problemas familiares de uma filha �nica e as rejei��es amorosas, al�m das abordagens indecorosas de pessoas fitness nos caf�s em que frequenta, nas ruas, etc. 

Entre estes acontecimentos, est� Ryan (Luka Jones) o principal relacionamento de Annie e que a convida para transar, mas n�o disp�e de um travesseiro pro caso dela querer passar a noite e pede que ela saia pela porta dos fundos, pelo quintal, pulando um muro bairro, se esgueirando para fora da casa como uma criminosa. O motivo? Ele n�o quer que seus amigos de casa a vejam. O medo � ser visto como o namorado da mulher gorda. 

Annie topa a condi��o na cren�a de que ele � o melhor que ela conseguir� em termos rom�nticos e sexuais. Aceita a migalha que foi condicionada a acreditar que merece - da comida, sempre em dieta restrita, aos relacionamentos afetivos, sempre minguados. E Annie n�o est� sozinha nessa. Eu poderia muito bem lhe fazer companhia. N�o s� no desejo de escrever sobre o que me atravessa e ser lida, mas ao me permitir sair pelas portas dos fundos, sa�das discretas, “vai na frente que eu vou depois”, entre outros comportamentos ap�s encontros, dates e/ou sa�das com pessoas, sobretudo homens, que n�o desejavam serem vistos acompanhados de uma mulher gorda. 
 

'Como Annie, eu me desdobrei, por muito tempo, tentando agradar esses caras que me ofereciam apenas o prazer deles e a repulsa/rejei��o por mim, ao mesmo tempo em que me desejavam, mas em segredo. Isso me faz concordar com a jornalista Lauren Strapagiel, do Buzzfeed no Canad�, quando ela diz: 'as mulheres gordas merecem coisa melhor do que esses p�ssimos interesses amorosos das s�ries''.

 
Poderia citar alguns exemplos e sei que voc�, mulher gorda, que est� me lendo na outra ponta, vai se identificar. O cara que parou o carro quadras longe de onde deveria me deixar com medo de ser visto comigo, o boy que s� podia se encontrar de madrugada e, durante a semana, em lugares pouco confort�veis, o cara que me pedia para ir na frente, que ele iria depois. E quanto mais listo, mais a mem�ria aciona lembran�as nada agrad�veis de tentativas de afeto que se tornaram pura objetifica��o do meu corpo e anula��o da minha subjetividade. Tal qual a Annie da s�rie Shrill. 
 
(foto: Shrill/HBO Max/Divulgação)
(foto: Shrill/HBO Max/Divulga��o)
 
 
Aqui cabe um paradoxo, que �: como podem corpos t�o grandes se tornarem, t�o rapidamente, invis�veis? 

Como Annie, eu me desdobrei, por muito tempo, tentando agradar esses caras que me ofereciam apenas o prazer deles e a repulsa/rejei��o por mim, ao mesmo tempo em que me desejavam, mas em segredo. Isso me faz concordar com a jornalista Lauren Strapagiel, do Buzzfeed no Canad�, quando ela diz: “As mulheres gordas merecem coisa melhor do que esses p�ssimos interesses amorosos das s�ries”. 

Sim, n�s merecemos mais. Mas existe um longo caminho entre o que nos � ensinando desde a  inf�ncia - e j� falamos disso aqui, em colunas anteriores - mas que passam pelo entranhamento da gordofobia e avers�o aos corpos gordos �s press�es cotidianas por sermos d�ceis, caladas, obedientes, perfumadas, magras, brancas, silenciosas, misteriosas, sobrando um gigantesco luminoso que questiona: como pode um corpo t�o desobediente, com algu�m t�o estridente, se julgar merecedor de afeto ou algo mais que a rejei��o, o desprezo e a abjetifica��o? 

Lauren n�o para por a�, mas nos faz refletir n�o s� sobre a Shrill, mas outras s�ries, que embora tragam representa��o, esta � quase sempre tr�gica, vitimista, sofrida ou mal amada. “As poucas hist�rias que vemos sobre mulheres gordas ainda s�o limitadas a suas vidas amorosas — que ainda costumam ser deprimentes e med�ocres”

Penso e hoje entendo que � dif�cil dissociar a vida de uma mulher gorda do que ela experiencia dos atravessamentos provocados por habitar um corpo dissidente, mas transformar isso na �nica pauta existente inclusive no entretenimento � exaustivo demais, porque a realidade j� � angustiante  e nossa �nica representa��o for uma mulher que tenta se ajustar � vida adulta mas se conforma com um cara que a pede para sair pelas portas dos fundos, n�o avan�amos muita coisa, embora seja uma vit�ria termos uma s�rie protagonizada por uma mulher gorda para discutirmos. 
 

'Tudo que chegamos � vida adulta sabendo � que ter um corpo gordo � ruim e indesej�vel, portanto, internalizamos o que nos dizem o tempo todo: %u2018somos ruins e indesej�veis'. Romper com este ciclo requer muito. Eu n�o saberia, de pronto, dizer o que seria necess�rio, embora essa pergunta me seja feita com frequ�ncia e eu use esta coluna como uma extens�o do div� para organizar os pensamentos acerca da compreens�o do que � habitar este corpo imenso, que ora � extremamente desej�vel e ora � extremamente indigesto. '

 
Tudo que chegamos � vida adulta sabendo � que ter um corpo gordo � ruim e indesej�vel, portanto, internalizamos o que nos dizem o tempo todo: ‘somos ruins e indesej�veis”. Romper com este ciclo requer muito. Eu n�o saberia, de pronto, dizer o que seria necess�rio, embora essa pergunta me seja feita com frequ�ncia e eu use esta coluna como uma extens�o do div� para organizar os pensamentos acerca da compreens�o do que � habitar este corpo imenso, que ora � extremamente desej�vel e ora � extremamente indigesto. 

No meio disso, temos que sobreviver, tal qual a Annie da s�rie. Enfrentar o cotidiano no trabalho, as piadas a seu respeito, os olhares maldosos, a m�e que s� fala com ela se for para mencionar dietas e amigos �s voltas com seus pr�prios romances e dilemas. Ser criativa nesse caos � um trabalho dif�cil - n�o mais do que no Brasil de 2021, que seja dito -, que exige a busca por um acolhimento, que vem em forma, mais uma vez de rejei��o. 

Quando Annie busca em Ryan qualquer tipo de acolhimento, recebe como resposta emoticons vazios, o que a leva, por conta pr�pria, a tomar novas decis�es, que a colocam no centro da pr�pria vida, com tenacidade, confian�a e rumo aos pr�prios sonhos. Enquanto Ryan se esfor�a para escond�-la dos roomates, manter o pr�prio emprego e recebe a m�e para lavar a roupa dele, a lou�a e ainda emprestar o carro. 

Mas, por mais que Annie consiga transformar a pr�pria realidade, o que inclui uma ida a uma pool party s� para mulheres gordas, em que, finalmente, ela se sente pertencente a algo - e pra mim essa foi tamb�m uma das experi�ncias mais revolucion�rias da vida: estar num ambiente em que todos os corpos eram gordos, parecidos com o meu, onde n�o haveria julgamento, � potente, iluminador e transformador - n�o consegue se desvencilhar de Ryane, que mal sai do lugar. 

Ap�s uma briga e um t�rmino, ele oficializa o relacionamento com Annie, mas segue sendo med�ocre, como sempre foi e n�o consegue acompanhar a mulher incr�vel que ela est� se tornando. E, por mais que a s�rie acerte, inclusive no guarda-roupas da protagonista, em alguns momentos como a festa na piscina ou ao lado da melhor amiga ou ainda expondo as amigas magras como a que Annie teve na universidade e que toda mulher gorda j� teve: a que � esquel�tica, mas para na frente do espelho e diz que vai parar de comer porque n�o quer virar uma gorda. Em outras palavras: “eu me cuido e tenho medo de me tornar algo como voc�”. Ainda sim, a s�rie derrapa nos clich�s e hip�teses heterossexuais, que nos mant�m presas na mesma narrativa, h� muito tempo, com uma vida afetiva limitada, deprimente e med�ocre. 

No entanto, � importante reconhecer que Shrill traz ao espectador uma perspectiva nova, especialmente quando o tema s�o as amizades e a diversidade. A roomate de Annie � Fran (Lolly Adefope), uma filha de nigerianos inglesa que mudou-se para Portaland para ser o que desejava: cabelereira. E tamb�m l�sbica. Negra e gorda, a personagem traz outras camadas, como a fam�lia, os romances e o fato de n�o conseguir namorar com algu�m por muito tempo. Suas quest�es est�o para al�m do peso e/ou do corpo e exploram seus sonhos, como o fato dela gostar de cantar, curtir a vida e celebrar a pr�pria solteirice. 
 

'expondo as amigas magras como a que Annie teve na universidade e que toda mulher gorda j� teve: a que � esquel�tica, mas para na frente do espelho e diz que vai parar de comer porque n�o quer virar uma gorda. Em outras palavras: 'eu me cuido e tenho medo de me tornar algo como voc�'. Ainda sim, a s�rie derrapa nos clich�s e hip�teses heterossexuais que nos mant�m presas na mesma narrativa h� muito tempo, com uma vida afetiva limitada, deprimente e med�ocre.'

 
Finalmente, com a Fran, temos a prova de que � poss�vel termos uma personagem gorda em um arco narrativo que n�o esteja esperando um homem para validar sua confian�a, seus afetos, sua vida - ainda que ela deseje algu�m com quem dividir a pessoa incr�vel que ela �. 


A s�rie traz outros temas importantes como cancelamento, feminismo liberal, racismo, rela��es de trabalho e pol�ticas p�blicas. Por esse aspecto, � bem contempor�nea e assertiva, embora, muitas vezes, as piadas entre as personagens seja demasiadas �cidas e cansativas dada a repeti��o com que acontecem. 


Shrill � uma s�rie que ensaia um riso da pr�pria gordofobia. Podemos ver isso quando Annie confronta o que ela chama de ‘troll’ e n�s chamamos de ‘hater’. A pessoa que a persegue nas redes sociais justamente porque ela representa tudo aquilo que ele gostaria de ser. Neste momento, vemos uma das cenas mais �picas e entendemos emergir toda for�a da personagem que vinha sendo minada pela opress�o. 

Das mensagens poss�veis, a que eu mais gosto � sobre como Annie se reinventa - mesmo que isso seja absurdamente cansativo para quem habita um corpo dissidente e como consegue alcan�ar os pr�prios sonhos quando deixa que a gordofobia e o preconceito do outro seja um fator determinante. Ao cruzar essa ponte, ela tem um ponto de virada interessant�ssimo, ainda que o ‘happy end’ n�o seja t�o feliz assim, mas realista. Talvez seja isso que mais me atraia na s�rie: o fato de que o final poderia acontecer comigo e de que a personagem encontra formas de lidar com as pr�prias dores, falhas e imperfei��es para al�m do corpo, mesmo quando esse insiste em atravess�-la. 
 

'aprendi que d� pra ser incr�vel e curtir assim, afinal, merecemos mais do que uma sa�da pelos fundos, uma poltrona ou qualquer outro espa�o que n�o nos cabe, onde temos que diminuir e/ou silenciar para caber.'

 
O final me lembra como � custoso, mas reconfortante aprender a transformar situa��es cotidianas ruins em algo ao menos divertido e palat�vel. Requer anos de pr�tica, eu sei - e algum desprendimento - como o dia em que eu comprei, na companhia a�rea, mais espa�o em uma poltrona que mais confort�vel num voo entre Campinas (SP) e Recife (PE)  e fui obrigada a mudar de lugar ap�s pedir um extensor de cinto

Naquele momento, diante da possibilidade de fazer um esc�ndalo, de enviar um e-mail � Ag�ncia Nacional de Avia��o Civil (Anac) - que nunca teria resposta, n�s sabemos - eu optei pela sa�da mais simples e talvez interessante: levei comigo o extensor de cinto e assim, nunca mais precisei pedir. Sento, desde ent�o, agilmente, nas sa�das de emerg�ncia - onde o espa�o para esticar as pernas � maior - e, silenciosamente, afivelo meu cinto ao extensor pego de outro voo e viajo feliz. E sozinha, claro, pois como a Fran e a Annie, aprendi que d� pra ser incr�vel e curtir assim, afinal, merecemos mais do que uma sa�da pelos fundos, uma poltrona ou qualquer outro espa�o que n�o nos cabe, onde temos que diminuir e/ou silenciar para caber. 



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