H� uma semana, assisti um v�deo de uma TV da minha cidade mostrando o in�cio da vacina��o em crian�as com comorbidades e entre elas, o Nicolas Takata se destacava. Autista, com 11 anos,
ele mandava um recado sem filtros.
Al�m de querer comer um pastelzinho com guaran�, ele manda um recado pra todo mundo se vacinar:“N�o acredita nas palavras desse Bolsonaro n�o, porque ae, deixa eu te falar, pode mandar seus filhos tomar a agulhada, t� super tranquilo. O m�ximo que pode ter � uma crian�a chorona e um bra�o dolorido, mas nada al�m disso. Voc� n�o vai virar nem um jacar� e nem uma formiga australiana”.
Eu amei tanto que me encarreguei de fazer o v�deo viralizar. Mandei para perfis como M�dia Ninja e Quebrando o Tabu, que aceitaram publicar. Tava feito. Em poucas horas, o v�deo j� tinha chegado para muita gente. Um cartunista fez uma tirinha com o Nicolas. A m�e dele me encontrou nas redes para agradecer e meu objetivo de fazer o v�deo - que j� chegou pronto - circular estava cumprido.
Mas, eu quis mais. Pensei: por que n�o enviar um pastelzinho com guaran� pro Nicolas? Como ele mesmo disse: ia ser top!
Descolei o endere�o com a m�e dele e fiz o envio. Minutos depois, recebi um v�deo - ainda mais fofo - dele me agradecendo pelos “produtos incr�veis” e refor�ando a import�ncia da vacina��o.
Estava feito. Nicolas tinha feito - e � fato - mais do que o ministro da sa�de pela vacina��o infantil no pa�s. E tinha dado o recado. A mensagem estava viralizada. No dia seguinte, outros perfis com milh�es de seguidores continuaram compartilhando a hist�ria.
E Nicolas se tornou um pequeno blogueiro. Um hotel da cidade ofereceu hospedagem. Uma marca de refrigerante entrou em contato comigo querendo mandar guaran� pra ele. E eu celebrando muito o fato de que uma crian�a que se vacinou e falou coisas muito certeiras - e engra�adas - estava sendo reconhecida por isso.
Nesse meio tempo, a TV local fez uma nova mat�ria com ele. Em visita � casa de Nicolas, ele pediu para que as pessoas parassem de enviar pastel para ele, afinal, j� tinha recebido muitos. E n�o se furtou de mandar um recado para “os obesos e teimosos do Brasil”.
“Tomem vacina e comam br�colis. Obesos e teimosos do Brasil: pros obesos, eu quero falar: deixem de ser teimosos, vai procurar alguma coisa para deixar de ser obeso”.
Bingo.
A empatia n�o passa pelas pessoas gordas
Pensei muito antes de escrever esta coluna. O medo de parecer injusta com uma crian�a autista � grande. Mas, o medo de me calar diante da gordofobia estrutural, � ainda maior.
Sem melindres, � preciso dizer. E tentar entender. Isso aqui n�o � sobre o Nicolas, mas sobre o que ele ouve e com quem ele convive. Da mesma maneira que ele aprendeu que vacinas salvam vidas. Ele aprendeu que pessoas gordas deveriam deixar de ser gordas.
Existe uma pervers�o naturalizada quando se fala em corpos gordos. Quem est� acima do peso considerado socialmente ideal ou habita corpos que foge aos padr�es �, automaticamente, desumanizado - e eu j� disse aqui e entendo necess�rio repetir: nada � pior do que a desumaniza��o. Se retiram sua humanidade, est�o dizendo que voc� n�o pode existir. Nada � mais nocivo � subjetividade do que uma viol�ncia desse porte.
Dos mais de 11 mil coment�rios na p�gina da rede social da TV local, nenhum deles d� conta da gordofobia expressada. Minha quest�o �: deveriam dar?
E se o Nicolas expressasse fobia contra outro grupo de pessoas oprimidas? Estar�amos todos brandos, rindo e celebrando? Ou problematizar�amos isso?
Fato �: a gordofobia n�o poupa ningu�m e, num mundo em que o discurso se torna cada vez mais sofisticado para dar conta de oprimir, a carta curinga � poder maltratar pessoas gordas sem que isso passem por alguma jurisdi��o, sem que seja alvo de processo, sem que seja mal visto.
A gordofobia velada � devastadora
Estamos em 2022 e ainda � cool rir de pessoas gordas de forma p�blica. Ainda � aceit�vel celebrar a magreza como o �nico estilo de vida poss�vel. Ainda � bacana fazer piadas com quem tem o corpo gordo.
Aprendemos a nos desconstruir e ter um olhar mais emp�tico aos corpos dissidentes, desde que eles n�o sejam gordos. Se forem, entalamos (com perd�o da palavra!) no discurso da sa�de, de que n�o feios, de que ningu�m � obrigado, de que n�o se pode promover um estilo de vida ‘n�o saud�vel’ entre outras balelas que permitem com que uma crian�a com defici�ncia dizendo para os ‘obesos deixarem de ser obesos’ se torne algo divertido e na fala do rep�rter ganhe um contorno de ‘pux�o de orelha sobre a sa�de’.
O que me intriga � que ningu�m pensa que as pessoas n�o s�o gordas porque elas querem. Existem in�meros fatores, inclusive gen�ticos, que levam a isso. E eu j� cansei de escrever sobre isso aqui. E n�o, n�o � uma quest�o do quanto voc� se esfor�a. � s� uma quest�o de como voc� quer/merece respeito por existir, independente da sua forma f�sica e do seu senso de obedi�ncia aos padr�es.
T� realmente cansada de pedir por respeito. E, tamb�m por isso, escrevo essa coluna. A gente precisa nomear. E o nome do que o Nicolas - ainda que seja neuroat�pico, engra�ado e fofo - fez � gordofobia. Ele aprendeu com algu�m. Precisamos entender: com quem?
E se ele fosse uma crian�a gorda? E � sobre isso tamb�m que o texto diz. N�o consigo fingir que n�o estou vendo porque algu�m que � v�tima de opress�o me oprime. Assim, vou tendo a minha - e a de todas as pessoas gordas deste pa�s, que somam mais de 60% - exist�ncia anulada em nome de uma normatividade doentia.
Encerro essa coluna - mais curta que as outras - perguntando: qual seu problema em aceitar e respeitar pessoas gordas?