
No seu livro Sobre a China (Objetiva), de 2011, Henry Kissinger analisa a hist�ria, a diplomacia e a estrat�gia chinesas na cena mundial. Art�fice da reaproxima��o entre os Estados Unidos e o “Imp�rio do Meio”, durante o governo de Richard Nixon, Kissinger realizou mais de 50 visitas a Pequim e a diversas prov�ncias chinesas, encontrando-se com as principais lideran�as que antecederam Xi Jinping, o atual presidente chin�s: Mao Zedong, Zhou Enlai e Deng Xiaoping. O ex-secret�rio de Estado norte-americano previu que a China e os Estados Unidos, uma pot�ncia continental e uma pot�ncia mar�tima, travariam uma longa disputa pelo controle do com�rcio mundial, cujo eixo se deslocara do Atl�ntico pelo Pac�fico. At� a�, nada demais. A coisa fica perturbadora quando ele mostra que essa disputa reproduziria o embate entre a Inglaterra, uma pot�ncia mar�tima, e a Alemanha, uma pot�ncia continental, pelo controle do com�rcio no Atl�ntico, o que provocou duas guerras mundiais no s�culo passado. Quais seriam a forma e desfecho desse embate entre os Estados Unidos e a China?
A resposta come�ou a ser dada em fevereiro de 2012, com um an�ncio da Chrysler, no intervalo da Superbowl, a final do campeonato de futebol americano: “As pessoas est�o sem emprego e sofrendo... Detroit nos mostra que d� para sair dessa. Este pa�s n�o pode ser derrubado com um soco”. Come�ava ali a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China que agora estamos assistindo. A Chrysler traduzia o sentimento de milh�es de norte-americanos que responsabilizavam a China pela perda de seus empregos. A empresa evocava o patriotismo ao dizer que comprar seus carros salvaria os americanos. Colou a tal ponto que a tese embalou a elei��o de Donald Trump em 2016.
O an�ncio fora visto por 111 milh�es de pessoas, o que popularizou uma discuss�o que, na verdade, havia sido iniciada em 2005, por Ben Bernanke, ent�o presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, e que ganhara for�a depois da crise financeira de 2008. O que dizia Bernanke? O d�ficit da balan�a de pagamentos dos Estados Unidos havia subido bruscamente no final dos anos 1990, atingindo US$ 640 bilh�es, ou seja, 5,5% do PIB em 2004. A poupan�a interna tamb�m havia ca�do 16,5% do PIB desde 1996. O d�ficit s� poderia ter sido financiado por investimentos estrangeiros. Para Bernanke, havia uma “fartura de poupan�a mundial” e os chineses, com um tremendo super�vit comercial com os Estados Unidos, n�o estavam investindo nem comprando produtos norte-americanos, estavam aplicando os ganhos em poupan�a e reservas de moedas.
A pandemia
Bernanke citava outras causas, como o aumento do pre�o do petr�leo e os “fundos de reservas” dos pa�ses para se prevenir em rela��o a crises, mas os chineses eram apontados como os grandes vil�es. Na verdade, os americanos aproveitavam a fartura de cr�dito e se endividavam numa bolha imobili�ria. A crise provocada pela fal�ncia do Lehman Brothers, por�m, parecia corroborar a tese do ent�o presidente do Fed: “Os super�vits em conta-corrente da China foram usados quase todos para adquirir ativos dos EUA, mais de 80% deles em t�tulos do tesouro e de ag�ncias muito seguros”, dizia o ex-presidente do Fed. Muitos economistas contestaram a tese, culpar os chineses era uma desculpa para o pr�prio fracasso. A desregulamenta��o exagerada do sistema financeiro e a especula��o no mercado imobili�rio norte-americano foram as principais causas da crise de 2008. A exist�ncia da tal “fartura de poupan�a” tamb�m � um mito. Entretanto, a narrativa est� a� at� hoje e ocupa o centro da campanha de reelei��o de Trump, que agora tamb�m culpa os chineses pela pandemia de COVID-19, que chama de “gripe chinesa”.
No Brasil, essa discuss�o tamb�m � pautada por interesses pol�ticos, pois � uma forma de transferir responsabilidades e encontrar um bode expiat�rio para a pandemia. Na guerra de fake news, atribuir as mais de 100 mil mortes por COVID-19 a um falso “genoc�dio comunista chin�s” reproduz uma mentalidade reacion�ria, xen�foba e racista. Al�m disso, essa ret�rica pode trazer p�ssimas consequ�ncias para a economia brasileira, haja vista que o nosso principal parceiro comercial � a China e n�o, os Estados Unidos, pot�ncia com a qual o presidente Jair Bolsonaro estabeleceu um alinhamento autom�tico na nossa pol�tica externa. Bastou as autoridades sanit�rias chinesas anunciarem a presen�a do v�rus da COVID-19 num lote de asas de frango congeladas exportado por um frigor�fico brasileiro para que as Filipinas, um parceiro comercial importante, suspendessem as importa��es de frango do Brasil. Ou seja, melhor fazer o dever de casa e ficar fora dessa briga.