
Quando o s�culo 20 chegava ao seu fim, o sentimento generalizado era de que a democracia liberal havia finalmente prevalecido como o melhor regime pol�tico e que, com exce��o da China, todos os pa�ses se encaminhavam para viver num sistema que combinava liberdade pol�tica e economia de mercado. A ideia dominante era que, uma vez libertos de governos autorit�rios e beneficiados pela prosperidade econ�mica, os homens se tornariam naturalmente mais pac�ficos, mais seculares e mais tolerantes com a diversidade humana, num caminho sem volta. Passadas apenas duas d�cadas, aqueles felizes progn�sticos mostraram-se excessivamente otimistas. Em muitas partes, a democracia est� na defensiva e h� um vis�vel crescimento do autoritarismo e de formas falsificadas de democracia.
O avan�o das tiranias ou, numa escala menor, a falta de vontade de muitas popula��es de defender a democracia diante dos riscos que a amea�am tem muitos motivos. As pessoas se tornaram mais informadas e multiplicaram suas demandas em rela��o ao Estado. Nos Estados autorit�rios o poder � muito mais centralizado e a a��o do governo n�o sofre de limita��es nem pelas institui��es de controle, como o Parlamento e o Judici�rio independente, nem por uma opini�o p�blica com liberdade para se expressar. Nas democracias, os processos de decis�o s�o complexos e tortuosos, e o poder de veto das institui��es e da opini�o p�blica torna o governo lento, quando n�o omisso. O que n�o pode ser esquecido � que governos sem restri��es podem errar muito e com frequ�ncia erram. Nossa ditadura de 1964 foi um caso exemplar.
No caso dos pa�ses emergentes, onde a pobreza ainda � muito grande e os mercados funcionam de modo muito imperfeito, a a��o do Estado � fundamental para induzir mudan�as e quebrar a in�rcia da economia. Justamente nesses pa�ses, em cuja forma��o sempre houve muito desequil�brio de poder entre as classes sociais e onde a vida democr�tica foi interrompida com frequ�ncia, as institui��es que definem o funcionamento do Estado s�o anacr�nicas e favorecem desigualmente os interesses estabelecidos. S�o democracias condenadas � imobilidade e, portanto, uma fonte permanente de ressentimentos e frustra��o. Mudam os governos, mas a vida permanece a mesma. At� um momento em que o conformismo acaba cedendo ao desespero.
As amea�as � democracia est�o por toda parte. O mundo, na verdade, est� se tornando um campo de batalha, tendo de um lado as democracias liberais e de outro os diversos tipos de tirania. Os combates ora tomam a forma de conflitos comerciais e econ�micos, ora chegam ao extremo da agress�o militar aberta, como � o caso da invas�o da Ucr�nia pela R�ssia, dando uma volta de mais de 70 anos no rel�gio da hist�ria. Hoje, os analistas com melhor esp�rito cr�tico identificam que a verdadeira raz�o para o ataque � Ucr�nia � o medo de Putin de que os russos venham a conviver, em algum momento, do outro lado de sua fronteira com um pa�s democr�tico e pr�spero, se integrado � Uni�o Europeia.
Os desdobramentos do conflito atual ser�o de grande alcance. A globaliza��o econ�mica e comercial vai retroceder e os pa�ses tender�o a ser organizar em blocos, com base em afinidades mais pol�ticas do que econ�micas. De um lado estar�o os Estados Unidos e do outro a China, mas o mundo � muito maior e mais diverso para caber nesta polariza��o. De qualquer modo, a qualidade da democracia e a capacidade do Estado em liderar um processo de crescimento muito mais complexo, com menos globaliza��o e mais pol�tica, definir�o o espa�o que pa�ses como o Brasil podem ocupar. � um problema grave, mas principalmente uma oportunidade hist�rica.
Do meu ponto de vista, estamos muito mal preparados para este novo caminho que a hist�ria estende diante de n�s. Temos institui��es pol�ticas totalmente inadequadas para favorecer um governo ativo e transformador, que seja capaz de trazer de volta o crescimento e dar cidadania econ�mica a toda a popula��o. E n�o ser� esta gera��o de Lulas e Bolsonaros que pode nos guiar por este caminho.