Revolu��o nos costumes foi acompanhada pelo EM, que registra e analisa as transforma��es da tradicional configura��o de pai, m�e e filhos para arranjos contempor�neos
postado em 07/05/2018 07:01 / atualizado em 07/05/2018 14:32
Por onde passam, seja na pra�a da Assembleia Legislativa de Minas ou numa simples ida ao supermercado, os g�meos Valentim e Elena, de apenas 2 meses e meio, tornam-se a principal atra��o do lugar. N�o � por menos. Ele exibe jardineira xadrez, com bols�o na frente e enfeite nos sapatinhos, combinando com o restante da roupa. Ela ostenta enorme la�o de fita na cabe�a, al�m do vestido curto, deixando transparecer a calcinha de renda guipir, na cor branca. Os looks de ambos s�o em tom de azul.
– Que lindos os dois beb�s! S�o g�meos? Quem � a m�e dessas fofuras? Por sa�rem sempre juntas, carregando seus beb�s no colo ou no slim, a psicopedagoga Alessandra Lopes, de 33 anos, e a historiadora Renata Lopes, de 31, revezam-se para atender ao interrogat�rio de praxe. “N�s duas somos as m�es!”, diz Alessandra, que j� tem a resposta na ponta da l�ngua, previamente combinada com sua mulher, Renata, juntas h� seis anos e casadas no papel, com registro civil em cart�rio.
Dependendo do n�vel de paci�ncia e do estado de exaust�o, em fun��o dos cuidados intensivos exigidos pelos beb�s, o casal homoafetivo feminino poder� dar meia volta e ir embora da pracinha ou, se preferir, detalhar como funciona o processo de insemina��o artificial, que permite a duas mulheres casadas gerarem os pr�prios filhos. “Com rela��o � gravidez, eu entrei com os �vulos e a barriga; e Renata com o amor e os cuidados com as crian�as. J� o s�men, an�nimo, veio do banco de doadores”, completa.
Sob a prote��o da mam�e Alessandra e da mam�e R�, os g�meos Valentim e Elena v�o crescer e se desenvolver dentro dos nov�ssimos arranjos familiares j� existentes em Minas e no Brasil, que acompanham a evolu��o nos costumes registrada ao longo de 90 anos do jornal Estado de Minas. � tradicional fam�lia mineira, formada por pai, m�e e filhos, s�o incorporados os arranjos contempor�neos, compostos por casais no segundo ou terceiro casamento, com la�os homoafetivos e at� de pessoas casadas, mas vivendo em casas separadas.
Um dos primeiros a conseguir casar duas mulheres no pa�s, o advogado Rodrigo da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Fam�lia (IBDFam), defende a tese de que a fam�lia � uma inven��o cultural do homem, e n�o da natureza. “Como tal, ela vai se adaptando aos novos tempos, com a quebra do monop�lio dos relacionamentos heteroafetivos”, acredita.
Juntas h� seis anos e casadas no papel, Alessandra e Renata Lopes optaram pela insemina��o, que realizou o sonho da maternidade com os g�meos Elena e Valentim (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Sempre na vanguarda brasileira, o IBDFam foi um dos primeiros a oficializar o registro da uni�o entre duas mulheres no papel, assim que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a uni�o entre pessoas de mesmo sexo como entidade familiar, em maio de 2011. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justi�a (CNJ) aprovou a Resolu��o 175, que regulamentou o procedimento. “Quando chegamos ao cart�rio da Rua S�o Paulo, o juiz de paz se negou a lavrar o casamento civil, alegando estar impedido por sua moral religiosa.
Em Minas Gerais, a Igreja ainda exerce muita influ�ncia sobre as institui��es, mas, no fim, exigimos a presen�a de outro representante do cart�rio, que efetivou o casamento”, conta o advogado.
Na �poca, apesar de ter sa�do a decis�o recente do STF, faltava obter autoriza��o judicial para “consumar” o casamento civil nos cart�rios em Minas.
Esse foi um dos primeiros casais a fazer parte das �ltimas Estat�sticas do Registro Civil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE), que, em 2016, somou 393 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O n�mero � ligeiramente maior que o de 2015, quando Minas registrou 378 casos, 14% a mais em rela��o ao de 2014 (331) e 80,8% maior que o de 2013 (209). Em todo o pa�s, foram 5.354 casos no �ltimo levantamento, em 2016, que registrou queda de 4,6% em rela��o ao ano anterior, com 5.614 casamentos similares – quantidade 15,7% maior do que a de 2014 e 51,7% acima da de 2013.
"Marido com peitos"
Nos dias de hoje, al�m de oficializar legalmente sua uni�o, os casais homoafetivos podem escolher entre adotar filhos ou gerar descendentes com a ajuda de avan�ados mecanismos de reprodu��o assistida, desenvolvidos pela ci�ncia. Apenas no Instituto Brasileiro de Reprodu��o Assistida (Ibrra), em Belo Horizonte, 27 casais gays conclu�ram o processo de insemina��o artificial no ano passado, o equivalente a 15% do movimento total da cl�nica. “Isso nem � mais novidade para n�s. Agora, a maior demanda na cl�nica � por fazer a orienta��o gen�tica do embri�o, cercando a possibilidade de o filho herdar doen�as como diabetes, press�o alta e todos os tipos de c�ncer”, observa o m�dico geneticista Bruno Scheffer.
No caso de Alessandra e de Renata, das quais ambos os nomes constam na certid�o de nascimento dos g�meos, as duas foram juntas � cl�nica, no momento de decidir o perfil do doador do banco de s�men a ser escolhido. “Preferimos a descri��o de um homem saud�vel, que desse prefer�ncia para a �rea de humanas e que gostasse de animais.
Em rela��o � cor da pele, fiz quest�o de escolher um doador que mais se aproximasse da apar�ncia da minha esposa, mas parece que minha gen�tica prevaleceu. Agora, conto com os banhos de sol para tornar Valentim mais moreninho”, brinca Alessandra. Segundo ela, o temperamento da espevitada Elena assemelha-se ao de Renata. “Nunca pensei em gerar filhos, mas concordei em sonhar junto com minha esposa, que sempre teve essa vontade. Nossa ideia era adotar o segundo filho, mas da� vieram os g�meos”, explica Renata, que optou por adiar os estudos de mestrado em hist�ria.
Ela decidiu dedicar este ano a cuidar dos beb�s, permanecendo mais tempo na casa onde moram, na cidade de Nova Serrana. J� Alessandra, respons�vel pela amamenta��o dos dois, voltar� a dar aulas assim que acabar o per�odo de licen�a-maternidade. “Costumo brincar que sou um marido com peitos. A Renata � quem tem mais jeito para fazer dormir, trocar fraldas e decidir as combina��es de roupa. Se deixar comigo, dou conta do servi�o, mas n�o garanto a qualidade”, admite. Com Valentim dormindo no colo, enquanto Elena se debate nos bra�os de Alessandra, mam�e R� concorda com a parceira: “Se deixar, ela mistura xadrez com blusa de bolinhas, vira um look tipo o Agostinho (personagem da s�rie A grande fam�lia)”.
Isabel, de 10 anos, � a ca�ula de Luis Laborne, fruto do segundo casamento (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Tom pejorativo
Nos prim�rdios do jornal Estado de Minas, nos anos 1930, e, portanto, no in�cio do s�culo passado, a maior parcela dos casamentos ocorria nos altares das igrejas cat�licas, onde geralmente era celebrada a uni�o entre um homem de fraque e cartola com uma mulher de v�u e grinalda, que deveriam ser felizes para sempre. � o que se pode presumir diante da falta de estat�sticas confi�veis do registro civil naqueles tempos. Somente a partir da d�cada de 1970, o IBGE passou a contabilizar o n�mero de casamentos e a idade dos noivos que subiram ao altar. O interesse maior da �poca era investigar a alta taxa da natalidade brasileira e a preocupante mortalidade dos fetos no nascimento.
Renata e Alessandra conseguiram, sem dificuldade, registrar os filhos com os nomes das duas como m�es (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
O percentual de separa��es no pa�s passa a ser quantificado pelo IBGE nos �ltimos 40 anos, com a aprova��o da Lei do Div�rcio, de 1977, bem como entram para as estat�sticas oficiais aqueles casais brasileiros que “juntam os panos”, vivendo sob o mesmo teto, a denominada uni�o est�vel de duas pessoas, sejam ou n�o h�teros. Por fim, a partir de 2011, com autoriza��o das uni�es est�veis entre pessoas do mesmo sexo, os quadros do IBGE passam a incluir casamentos entre c�njuges de mesmo sexo. Assim, as estat�sticas mais recentes, de 2016, mostram pela primeira vez no Brasil redu��o no total de casamentos registrados, de 3,7%. Naquele mesmo ano, o n�mero de div�rcios no pa�s aumentou 4,7%.
Antigamente, a sociedade brasileira demonstrava enorme preconceito em rela��o a mulheres que tomavam a decis�o de pedir o div�rcio ou separa��o dos maridos, denominadas de desquitadas, na maior parte das vezes em tom pejorativo. Atualmente, a sociedade j� incorporou o crescente n�mero de div�rcios no pa�s. Segundo o IBGE, tr�s em cada 10 casamentos no Brasil acabam em separa��o, segundo levantamento feito pelo instituto quando a Lei do Div�rcio completou 40 anos, em 2017.
Arranjos diferentes
“N�o sei determinar direito qual � a natureza do meu relacionamento atual”, brinca o oftalmologista Luis Laborne Tavares, morador do Bairro Cidade Jardim. Divorciado da primeira mulher, com quem tem dois filhos adultos, ele se casou pela segunda vez com a banc�ria Carina, que j� era m�e de um filho adolescente. O novo casal gerou a ca�ulinha dos tr�s arranjos familiares, a estudante Isabel, de 10 anos. O m�dico e a mulher ficaram separados por um tempo e decidiram retomar a rela��o este ano, mas continuar vivendo em casas diferentes.
“A m�e mora a dois quarteir�es daqui. Todos os dias ela leva Isabel para a escola de manh� e eu pego de volta, trazendo-a para minha casa. Ela tem quartos ‘de menina’ montados em ambas as casas”, diz Tavares. J� Isabel considera “�timo” poder variar de casa quando quiser. “Moro com os dois. Posso vir a p� para a casa do meu pai”, diz a menina, que pediu a ele um quarto decorado na cor cinza.
Gente avan�ada
A partir de agora, as uni�es entre parceiros do mesmo sexo j� come�am a ser vistas com “ares de naturalidade”, segundo o presidente do IBDFam, Rodrigo da Cunha. “A sociedade mineira, historicamente mais fechada, tem sido mais tolerante. As fam�lias homoafetivas j� convivem harmoniosamente com fam�lias mineiras tradicionais. Quem n�o tiver essa compreens�o e toler�ncia estar� condenado a ficar fora do mundo atual ou relegado a permanecer no bloco da saudade”, alfineta. � poss�vel dizer que os mineiros est�o at� mais “avan�ados”, diante das uni�es de homem com homem e de mulher com mulher, que subiram 4% de 2015 para 2016, enquanto no pa�s o movimento foi de queda.
O Brasil teve 1.095.535 casamentos em 2016, segundo o IBGE, uma queda de 3,7% em rela��o ao ano anterior (foto: Ilustra��o de Soraia Piva)
A grande pol�mica da atualidade ultrapassou as uni�es homoafetivas, voltando-se para o fen�meno das fam�lias poliafetivas, que, segundo o advogado Rodrigo da Cunha, conta com cerca de 30 escrituras registradas em territ�rio brasileiro. “Em Minas, j� � conhecida a hist�ria de uma fam�lia em que o marido deixou a primeira mulher, com quem tem um filho, e foi viver com outra, ganhando outro filho. Passado um tempo, a primeira mulher pediu para voltar. O marido e a atual esposa aceitaram o retorno da anterior. Agora, os tr�s convivem na mesma casa, inclusive com todos os filhos”, conta.
Formou-se a fam�lia poliafetiva, que aceita sob o mesmo teto o marido, duas esposas e os filhos de ambas, devendo obedi�ncia a um �nico pai. “No Rio de Janeiro, tr�s mulheres vivendo juntas, sem a presen�a de um homem na rela��o, conseguiram ser registradas no cart�rio como sendo uma fam�lia”, diz. “N�o � a Justi�a que inventa essas coisas, ela s� vai nomeando o que come�a a existir na sociedade. A gera��o jovem tem uma nova concep��o de vida, mais livre e aut�ntica, sem tanto medo de encarar o pr�prio desejo, sem tanta culpa”, compara.
ABAIXO OS TABUS
“Ao longo de quase 25 anos de hist�ria no jornal, n�o h� como n�o destacar a evolu��o da sociedade, com reflexos tamb�m na medicina e na forma��o das novas fam�lias. Casais heterossexuais com �vulos doados, casais homossexuais com filhos, pais adotivos de duas ou mais crian�as, m�es e pais solteiros, mulheres sendo m�es depois dos 60 anos. Eu mesma, cidad� de Belo Horizonte, fui m�e solteira e nunca sofri muito preconceito por isso, embora perceba o quanto ainda � poss�vel a evolu��o do ser humano. BH cresceu, os moradores ampliaram seus horizontes e as fam�lias tornaram-se mais generosas. � tempo de aceita��o, de liberta��o das amarras e do fim dos olhares assustados diante de assuntos como casamentos homoafetivos, bancos de s�men ou coisas do tipo. E ainda h� tanto para evoluir...”
Ellen Cristie, subeditora do Portal Uai, ex-rep�rter de Gerais
Fam�lias simult�neas
Outra novidade entre os arranjos familiares, que a jurisprud�ncia come�a a reconhecer no pa�s, inclusive em Minas, s�o fam�lias paralelas ou simult�neas. A lei ainda qualifica essas ocorr�ncias como concubinato, mas j� existem julgamentos em Minas acatando a divis�o da heran�a entre duas mulheres que conviveram durante a vida inteira com o mesmo homem, simultaneamente. At� a Constitui��o de 1988, os filhos fora do casamento eram tachados como ileg�timos.
Por fim, os casamentos continuam existindo e os novos arranjos ainda s�o uma exce��o � regra, mas, segundo o presidente do IBDFam, “o princ�pio fundamental e importante da monogamia est� em xeque no mundo. Talvez, esse seja o �nico assunto filos�fico s�rio da atualidade, pois envolve grandes quest�es como amor, fidelidade, morte, dinheiro”.