Nas p�ginas do Estado de Minas de 2011, por ocasi�o de uma s�rie de reportagens sobre a ent�o recente atualiza��o da Lei Nacional da Ado��o (Lei 12.010/2009) no pa�s, era uma vez uma mat�ria que come�ava assim: “Nas v�speras do Natal, a pedagoga Luciana de Pinho Tavares, de 38 anos, recebeu liga��o de um abrigo em Bambu� avisando que havia uma menina esperando por ela, de 4 meses, mas que era um bombonzinho. O eufemismo queria dizer que se tratava de uma crian�a negra”.
Naquela �poca, devido � lentid�o, a fila da ado��o custava a andar porque os casais davam prefer�ncia a beb�s de pele e olhos claros. Come�aram a ser incentivadas no pa�s as chamadas ado��es tardias, de crian�as um pouco maiores; incluindo a guarda de irm�os morando juntos nos abrigos e tamb�m a de crian�as com bi�tipo mais comum ao das fam�lias carentes brasileiras.
“Os casais cultivam o sonho de adotar uma crian�a clarinha. Aos poucos, vamos mostrando a eles que sonhar � permitido, mas que a realidade brasileira � diferente. Basta visitar um abrigo para se apaixonar por uma crian�a. N�o � o casal que escolhe a crian�a, ela � quem escolhe o casal”, ensina Sandra Amaral, fundadora do grupo De volta para casa, de Divin�polis, que nunca enfrentou um caso de devolu��o de crian�as.
Passados alguns anos, o bombom que veio embrulhado em uma manta infantil cresceu e se transformou na alegre e corajosa garotinha Maria Clara Henriques Pinho, de 9 anos, estudante de uma escola com orienta��o da pedagogia Waldorf, em Belo Horizonte. A nota triste � que o pai adotivo, o administrador Anderson Henriques Resende, que tinha 41 anos na chegada da filha, fazia hemodi�lise e acabou morrendo quando Maria Clara estava com 5 anos e meio. S� aos 7 anos completos vieram os pap�is definitivos da ado��o: “� muito angustiante pensar que algu�m pode chegar para lev�-la embora. Foi um al�vio”.
Ao se ver sozinha para criar a filha, Luciana enfrentou uma batalha pessoal, mas recebeu apoio incondicional da menina. “N�o sei o que seria de mim sem a Maria. Somos uma fam�lia que deu certo. Nossa rela��o n�o � perfeita e, como em todas as outras fam�lias, acontece de a gente fazer coisas que n�o gostaria de ter feito”, afirma a pedagoga, que vive se autovigiando para n�o mimar a filha, contornando a tend�ncia dos chamados pais do cora��o, que muitas vezes exageram nos cuidados, tentando suprir a falta j� vivida pelas crian�as provenientes dos abrigos.
"N�o sei o que seria de mim sem a Maria. Somos uma fam�lia que deu certo. Nossa rela��o n�o � perfeita e, como em todas as outras fam�lias, acontece de a gente fazer coisas que n�o gostaria de ter feito"
Luciana Tavares, m�e adotiva de Maria Clara
Luciana confessa que desenvolveu uma antena parab�lica invertida, incapaz de captar atitudes de preconceito em rela��o � diferen�a no tom da pele dela e da filha, ocorridas principalmente em lugares p�blicos como shopping centers e pracinhas. “Outro dia, Maria chegou meio triste, falando que disseram que o cabelo dela era de pobre, de mendigo. Ainda n�o consegui trabalhar isso direito com ela. Percebo que, muitas vezes, sente-se insegura, embora seja bem extrovertida e alegre. Ao subir no palco para as apresenta��es de jazz, por exemplo, ela se enche de coragem, vai l� e arrasa”, compara a m�e, que faz quest�o de levar e buscar a filhota nas aulas de dan�a.
Sem esconder o orgulho, sempre contou a verdade sobre a ado��o a Maria Clara: “Digo sempre que eu a escolhi para ser minha filha e, portanto, ela deve se sentir ainda mais importante”. Anos de ‘gesta��o’ O tema ado��o foi tratado pela primeira vez no pa�s h� pouco mais de um s�culo.
O Estatuto da Crian�a e do Adolescente
Em 1916, o C�digo Civil brasileiro estabelecia como requisitos para o adotante ter no m�nimo 50 anos de idade, n�o possuir filhos e ser pelo menos 18 anos mais velho que o adotado; em caso de ado��o por casal, esses deveriam ser legalmente casados. Tr�s leis se sucederam, em 1957, 1965 e 1979, at� a chegada do inovador Estatuto da Crian�a e do Adolescente (ECA), em 1990, presente na atual legisla��o. Hoje, casais homoafetivos t�m sucesso na busca pelo direito de adotar um filho. Mas ainda � um processo que exige paci�ncia.A professora de hist�ria Vera Inez Ter�ncio Rodrigues, de 44 anos, vivia em uni�o est�vel com Ana Paula de Sousa, educadora social e estudante de educa��o f�sica, de 38. Em comum acordo, as duas decidiram entrar na fila da ado��o do Juizado da Inf�ncia e da Juventude de Belo Horizonte. No entanto, o processo para concretizar a ado��o foi t�o prolongado e desgastante que ambas acabaram se separando, h� quatro anos, mas sem desistir da ideia de se tornar mam�es dos irm�os Caetano Ramirez e Gabriel Eduardo, de 9 e 11 anos. “� dif�cil acreditar, mas nunca senti olhar preconceituoso por ser casada com uma mulher, mas sofremos todo tempo questionamentos em rela��o aos meninos. Querem saber por que eles s�o diferentes de n�s duas, perguntam se s�o adotados”, comenta a historiadora.
Para facilitar o conv�vio di�rio entre as fam�lias, as mulheres optaram por continuar morando no mesmo Bairro Boa Vista, apesar de em casas separadas. Os dois irm�os lidam bem com a situa��o. “Fico tentando fazer coisas bem boas para compensar tudo o que elas passaram para nos adotar”, elogia Caetano. Sem que ningu�m pergunte a esse respeito, o garoto vai logo dizendo que “� bem melhor ter duas m�es do que uma m�e e um pai, porque, �s vezes, um pai pode pegar mais duro nas regras”, completa ele, que, de acordo com o ensinamento recebido em casa, trata as pessoas mais velhas como senhor e senhora.
Ao ouvir a fala do filho, Ana Paula acha gra�a da compara��o estabelecida em sua cabecinha, mas n�o leva muito em considera��o a falta da figura paterna. “Esse � um ponto de vista machista. A presen�a masculina � boa, mas n�o � necess�ria. Nossos meninos n�o v�o ser menos homens por ter assistido a alguns epis�dios de Thinker Bell (desenho sobre a fada Sininho)”, defende ela, lembrando que joga futebol e tamb�m pratica lutas marciais. Ela acredita que, mais importante do que ter um pai, � saber que o casal respons�vel pelos filhos concorda entre si sobre regras b�sicas da educa��o a serem exigidas no lar. “Antes de discutir com os meninos, conversamos muito entre a gente. Uma nunca desautoriza a outra”, afirma.
'Amor e boa educa��o'
“Se voc� tem o sonho de ser m�e e quer adotar um filho, recomendo levar adiante o processo, com firmeza e sem ouvir palpites das outras pessoas. Para os pais (ou m�es) adotivos, a cobran�a � mais cruel, mas a recompensa � que nossos filhos s�o maravilhosos e gratos por ter uma casa, amor e boa educa��o”, ensina Ana Paula, que deu entrada nos pap�is da ado��o aos 30 anos. Ela completa, feliz da vida: “Um dos meninos � minha c�pia, como se tivesse sa�do de dentro da minha barriga”.Dois pais e duas m�es Entre as �ltimas novidades referentes � ado��o nas varas de Fam�lia do pa�s, decis�o do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2014, autoriza a registrar o nome de dois pais e duas m�es na certid�o de nascimento do beb� (multiparentalidade), regulamentando antigo costume no Brasil, em que beb�s eram entregues aos chamados “pais de cria��o” pelas m�os dos pr�prios pais biol�gicos, que reconheciam n�o ter condi��es financeiras ou emocionais de cuidar dos filhos.
Em Ipatinga, no Vale do A�o, h� um caso desses em andamento, mas que corre em sigilo. Assim, quando o filho estiver na idade adulta, ter� direito a procurar pela fam�lia de origem caso sinta a necessidade de descobrir de onde veio.