Estado de Minas

Os desafios da cidade para garantir a inclus�o

BH vem abrindo portas para grupos historicamente segregados, mas o caminho da diversidade � longo e enfrenta onda mundial de retrocesso


postado em 07/05/2018 07:00 / atualizado em 04/05/2018 18:11

Um dia na vida de Terezinha Oliveira da Rocha, de 61 anos, pode reservar alegrias e surpresas, imprevistos e decep��es – e nem com determina��o e bom humor ela consegue tirar de letra. Ascensorista licenciada do trabalho e vendedora de t�tulos de capitaliza��o na Pra�a Sete, Centro de Belo Horizonte, “para garantir o sustento”, ela enfrenta obst�culos inaceit�veis para quem se locomove numa cadeira de rodas. “� o �nibus com o elevador estragado, s�o os buracos na cal�ada, os pr�dios p�blicos sem acessibilidade e muitos outros problemas”, lamenta Terezinha, que tem um filho e tr�s netos.

Terezinha Rocha, de 61 anos: 'Antes ninguém sabia lidar com um deficiente. Não existíamos. Mas falta melhorar muito'(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Terezinha Rocha, de 61 anos: 'Antes ningu�m sabia lidar com um deficiente. N�o exist�amos. Mas falta melhorar muito' (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Apesar das queixas, ela reconhece que cidades como Belo Horizonte ao longo da hist�ria evolu�ram nos conceitos de acessibilidade e inclus�o. Mas testemunha: ainda h� um longo caminho a percorrer para que essas duas palavras t�o importantes fa�am parte do cotidiano de mais parcelas da popula��o, como outras mulheres, negros e o p�blico LGBT.

Em uma tarde de sexta-feira, o Estado de Minas acompanhou um momento delicado na vida da cadeirante. Querendo usar o banheiro, Terezinha se dirigiu ao pr�dio da Unidade de Atendimento Integrado (UAI), na Pra�a Sete, e deu com a cara na porta. No elevador que d� acesso ao sanit�rio e � pr�prio para pessoas com defici�ncia e idosos, lia-se a frase: “Em manuten��o”. Segundo a gest�o da unidade, fruto do fim do contrato com a empresa que cuidava do equipamento. Como ocorre nessas ocasi�es, restou a Terezinha buscar ajuda no com�rcio. Um dos maiores gargalos para quem tem necessidades especiais est� no transporte p�blico.


Ao visitar os netos no munic�pio de Contagem, a cadeirante (motorizada) j� chegou a ficar tr�s horas no ponto de �nibus no Centro de BH. Um coletivo parou e n�o tinha elevador; em outros dois, o equipamento estava estragado; no quarto, passageiros desceram e a ajudaram a entrar. Integrante do Grupo Autoestima e Inclus�o, a moradora de Santa Luzia, na Grande BH, v� como avan�o o bom acolhimento das pessoas. “Antes, ningu�m sabia lidar com um deficiente. N�s n�o exist�amos. Havia um preconceito maior.” Preconceito em qualquer situa��o � “terr�vel”, ressalta o presidente do Centro de Luta pela Livre Orienta��o Sexual de Minas Gerais (Cellos-MG), Azilton Viana.

No caso de l�sbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transg�neros, ele diz que h� mais respeito hoje do que h� duas d�cadas, quando saiu do interior para BH. Um bom exemplo, explica, est� na Pra�a Raul Soares, Regi�o Centro-Sul, onde imperavam “a viol�ncia e a persegui��o”. Agora, diz, o local se tornou um espa�o p�blico de reconhecimento “do afeto de casais”, resultado da luta e de um movimento organizado, com a��es permanentes.

'Quem ama não mata': repúdio a uma série de assassinatos de mulheres por seus companheiros mobilizou ativistas na Igreja São José(foto: Vera Godoy/Arquivo EM - 18/8/1980)
'Quem ama n�o mata': rep�dio a uma s�rie de assassinatos de mulheres por seus companheiros mobilizou ativistas na Igreja S�o Jos� (foto: Vera Godoy/Arquivo EM - 18/8/1980)

Professor de filosofia com mestrado em ci�ncia da informa��o e doutorado em curso na �rea, Viana cita outro exemplo das transforma��es na sociedade: “Em julho de 1997, na primeira Parada Gay de BH, apenas 50 pessoas sa�ram � rua, mas com m�scaras para cobrir o rosto. J� no ano passado foram 80 mil. E ningu�m precisou disso”. Mas, para ele, uma nova onda conservadora, mundial, preocupa. O melhor ant�doto, acredita, est� nas pol�ticas p�blicas, em a��es afirmativas e na sensibiliza��o, j� que “a conscientiza��o leva a mudan�as de atitude”.

Vulnerabilidade e discrimina��o

“Por mais que sejamos uma popula��o formada por brancos, negros e ind�genas, o que se leva em conta no momento da discrimina��o racial s�o os tra�os da pessoa, como a cor da pele e a textura dos cabelos, alisados ou n�o. Al�m disso, homens negros ou mulheres negras, independentemente da classe social, tamb�m sofrem com o racismo, mas se a roupa usada indica e representa a cultura da periferia, h� um agravamento, e o preconceito que enfrentam � pior ainda. Assim, a pessoa se torna um suspeito aos olhos da pol�cia e n�o um sujeito de direitos”, afirma a pesquisadora Aline Neves Rodrigues Alves, professora do curso de especializa��o em pol�ticas da promo��o da igualdade racial na Faculdade de Educa��o da UFMG, e de geografia na Escola Municipal L�dia Ang�lica, no Bairro Itapo�, Regi�o da Pampulha.

Certa de que ainda h� muita discrimina��o contra a popula��o negra, Aline explica que as pol�ticas p�blicas voltadas para supera��o do racismo, em BH, se concentram nos campos da educa��o e da cultura. “Para melhorar, em todos os aspectos, e em especial no caso da mulher negra, � preciso acolher suas demandas, como o atendimento qualificado nas delegacias e no local da ocorr�ncia.”

"� constrangedor"

Moradora do Bairro Cidade Nova, na Regi�o Nordeste de BH, a arquiteta Carla Andrade Reis, casada e m�e de uma adolescente de 16 anos, n�o duvida de que as mulheres ainda s�o presas f�ceis na viol�ncia urbana, e que sofrem discrimina��o quando em posi��o de comando. “Quando vou tocar uma obra, enfrento dificuldades ao tratar com os oper�rios. � constrangedor. E muitas vezes preciso contar com a ajuda de um engenheiro”, conta.

Os tempos s�o outros em BH, conta Carla, formada, nos anos 1990, na Escola de Arquitetura da UFMG, na regi�o Centro-Sul da capital. “Na �poca de estudante, minhas colegas e eu sa�amos de madrugada das festas e desc�amos a p� a Avenida Afonso Pena. Hoje, n�o teria coragem de fazer isso, pois n�o me sinto segura nem para sair de carro � noite.”

"Quando vou tocar uma obra, enfrento dificuldades ao tratar com os oper�rios. � constrangedor. E muitas vezes preciso contar com a ajuda de um engenheiro"

Carla Andrade Reis, arquiteta, casada e m�e de uma adolescente


A esperan�a da arquiteta � que haja mais respeito, menos viol�ncia e que o abomin�vel preconceito, contra quem quer que seja, finalmente caia por terra. Do descaso � acolhida ‘‘No ano em que completo 29 anos de jornal Estado de Minas, considero uma honra compartilhar a experi�ncia que tive em uma reportagem de mobilidade urbana. N�o pude deixar de me emocionar com a hist�ria da m�e de tr�s filhos, dois deles cadeirantes, que depende diariamente do transporte p�blico.

Acompanhamos sua luta di�ria ao sair de casa, em Ribeir�o das Neves, na regi�o metropolitana, e seguir para a Associa��o Mineira de Reabilita��o, no Bairro Mangabeiras, em BH. O percurso � feito tr�s vezes por semana, em quatro condu��es, com um filho em cadeira de rodas e o outro no colo – �s vezes com o terceiro. Al�m da batalha dessa guerreira, me impressionou o comportamento de motoristas de �nibus que n�o paravam no ponto ap�s avistar aquela fam�lia, que precisa tanto de aux�lio e carinho, em vez de descaso e desrespeito. O conforto, por sorte, vem a bordo do mesmo meio de transporte: passageiros que se prestavam a ajudar m�e e filhos mostram que Belo Horizonte, mais que esperan�a, tem jeito.’’


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