Estado de Minas

Cora��o de m�e - Olhem para as estrelas

Artigo da jornalista D�a Januzzi, criadora do blog Novos Velhos, aos 65 anos, e militante do envelhecimento ativo pregado pela Organiza��o das Na��es Unidas (ONU)


postado em 07/05/2018 07:00 / atualizado em 04/05/2018 18:29

Aqui na Serra do Cip� – onde moro h� um ano – est� tudo bem. Mas � o piado dos p�ssaros no ninho que me acorda �s 6h. Antes imposs�vel para quem n�o gostava de assumir nenhum compromisso t�o cedo. Abro os olhos e espregui�o para ver como est� Mel, a vira-latas que acabei de adotar. Aprendo com ela a me espichar toda antes de sair da cama. Mas o que me chama a aten��o agora � a flor de cactus que acabou de nascer. Parece uma estrela. Perdi o espet�culo do desabrochar por quest�o de segundos, porque me distra� com o bando de maritacas que, hoje, voam num estranho sil�ncio.

O despertador do celular toca agora, j� �s 7h. Eu morro de rir. Vou l�, desligo e deixo o smartphone off-line, porque vou caminhar. Sempre adorei andar sem rumo para p�r as ideias em ordem. Na cidade era assim. Aqui na Serra do Cip� tamb�m. Apesar de saber que caminhar me acalma e p�e em ordem os pensamentos, s� agora entendo por que o sil�ncio e o caminhar s�o formas de resist�ncia pol�tica neste mundo conectado, onde todos andam de cabe�a baixa conversando no WhatsApp, Facebook, Instagram – e toda essa linguagem virtual.

(foto: Ilustração de Marcelo Lélis)
(foto: Ilustra��o de Marcelo L�lis)

Antes de sair, tomo um banho na ducha do jardim. A �gua gelada entra pelos poros da pele e rega a minha alma. Mel faz a maior festa para mim, como se agradecesse por t�-la tirado da rua e dos maus-tratos. N�s duas brincamos e sigo pela rua onde moro, com o significativo nome de Santana. Passo pela casa da artista pl�stica Waninha, que mora no Cip� h� 11 anos. Ela tem uma verdadeira farm�cia de ervas, flores, sementes, capins.

A casa dela � um ateli� a c�u aberto. Um grilo acaba de pousar na varanda dela em cima dos pinc�is e dos carimbos que ela mesma confecciona para decorar panos de prato, toalhas, bandanas, bolsas e tudo o que a criatividade permitir. Bato o ponto todos os dias na casa de Waninha. A gente ri, conversa, troca receitas, toma ch� com folhas de laranjeira, de mexerica, para acalmar o esp�rito inquieto.

Ela me conta que ficou livre do v�cio de ver televis�o. Ex-dependente, ficava 24 horas ligada na telinha, mas hoje prefere defender os animais e a natureza da Serra do Cip�. � uma militante ferrenha. N�o gosta de ver animal maltratado nem lixo por todo lado. Ela recicla tudo. Parece que faz parte de um novo tempo, sem tantas atrocidades. Foi Waninha quem me trouxe a Mel. Temos guarda compartilhada. Um dia, ela compra o rem�dio para pulgas, outro dou as vacinas necess�rias.


Quando vou a BH, ela toma conta da Mel. Waninha tamb�m tem a Flor e a Fray, dois anjos caninos. O celular de Waninha chama para a reuni�o no Mercadinho T� Caindo Ful�, um espa�o dos produtores locais onde eles levam todos os dias frutas, verduras e legumes sem veneno. Chitas coloridas enfeitam as mesas e as estantes. � um mercado de encantos. Despe�o-me dela e procuro uma das entradas do Parque Nacional da Serra do Cip�, para caminhar na trilha que vai dar no Rio Cip�, onde descobri uma de suas muitas curvas.

Enquanto n�o chego at� o remanso do rio, penso que estou envelhecendo, que no horizonte do futuro vai ocorrer um tsunami demogr�fico. A cada ano, 600 milh�es de pessoas chegam aos 60 anos. Cria do emprego formal, n�o me planejei para a velhice, mas pretendo ser convocada para a revolu��o dos velhos.
Ainda bem que envelhecer hoje n�o � uma trag�dia, mas uma conquista.

Proje��es indicam que, dentro de 20 anos, o Brasil ser� a sexta na��o mais envelhecida do mundo, sendo que os antigos tabus n�o se aplicam mais. Vamos conviver cada vez mais com velhos ativos, conscientes e integrados. Fa�o parte dessa gera��o que mudou comportamentos e que vai lutar para ter uma velhice ativa e saud�vel, sem preconceitos.

"Porque a gente usa a tecnologia muitas vezes como fuga emocional, como quando voc� n�o est� conseguindo lidar com uma situa��o, ent�o, para de pensar no assunto"

D�a Januzzi


Tenho que confessar: morar na Serra do Cip� � um esporte radical. Imagine tomar um banho de cachoeira e ter que “escalar as pedras” at� l�. Imagine que neste momento estou exausta com a caminhada de mais de uma hora at� o Retiro – um lugar m�gico, que exige condicionamento f�sico e disposi��o para quem j� passou dos 60. Na companhia de uma nativa de nome Soninha, desbravo a Serra do Cip�. Ela tem 40 anos, mas ningu�m de 20 � t�o saud�vel quanto ela. �s vezes sinto o peso da idade, pois Soninha tem que me dar a m�o para descer uma pedra ou outra. Escorrego aqui e ali, mas chego, com certa dificuldade, para o melhor banho de rio que j� tomei. Vejo as piabas que brincam � minha volta e penso:  “Ser� que d� para envelhecer aqui?”.

De volta, me deparo com jovens saindo da escola, a maioria com o celular na m�o e a cabe�a baixa para conversar com o outro, mesmo que ele esteja a dois passos. Aqui tamb�m os nativos digitais fazem da internet uma extens�o do corpo. Smartphones s�o como cord�es umbilicais. Eles est�o � margem de muitas conquistas urbanas, mas ligados o tempo todo no WhatsApp.

Sei que, algum dia, as pessoas que t�m um comportamento contr�rio a essa gera��o cabe�a baixa v�o se tornar cool. Assim como hoje � feio destruir o meio ambiente. N�o vou jogar pedras na tecnologia, apesar de ainda ser uma semianalfabeta virtual, mas enquanto escrevo este texto, gra�as � internet que chega aqui por fibra �tica, continuo pertencendo ao mundo.

Estou on-line agora e o celular grita. � Raquel Camargo, criadora da ag�ncia Lhama-me. Liga��o via WhatsApp. Ela me avisa que n�o est� em BH, mas morando na Austr�lia para aprender mais. N�made digital, ela acha que a tecnologia n�o � o dem�nio do neg�cio. “� muito mais a nossa dificuldade de administrar a emo��o.

Porque a gente usa a tecnologia muitas vezes como fuga emocional, como quando voc� n�o est� conseguindo lidar com uma situa��o, ent�o, para de pensar no assunto. Como? Ah, vamos torrar nosso tempo fazendo nada no Facebook. Fazendo nada no Instagram. Desperdi�ando nosso tempo. Enfim, todo mundo faz isso! E se n�o fosse a tecnologia, a internet, o celular, seria o cigarro na d�cada de 1940. Seriam outras coisas, porque o ser humano sempre vai procurar esse tipo de muleta.”

"S� agora entendo por que o sil�ncio e o caminhar s�o formas de resist�ncia pol�tica neste mundo conectado, onde todos andam de cabe�a baixa conversando no WhatsApp, Facebook, Instagram"

D�a Januzzi


Combino as aulas com Raquel, que me tira a ignor�ncia virtual: “N�made Digital � uma pessoa que est� disposta a viver em outros pa�ses, em qualquer lugar, ou que seja na Serra do Cip� usando a internet como suporte, para fazer a vida ser sustent�vel”.

Depois de conversar com Raquel, volto a ficar no modo avi�o e lembro-me de uma frase de um cronista carioca: “A maior prova de amor hoje � desligar o celular”. Concordo. Aqui, na Serra do Cip�, continuo conectada interna e externamente. De vez em quando fa�o um detox virtual. Sigo � risca um dos conselhos que o astrof�sico brit�nico Stephen Hawking (1942– 2018) deixou para os filhos: “Lembrem-se de olhar as estrelas e n�o para baixo”.

A jornalista Déa Januzzi, criadora do blog Novos Velhos, e militante do envelhecimento ativo pregado pela ONU(foto: Arquivo EM)
A jornalista D�a Januzzi, criadora do blog Novos Velhos, e militante do envelhecimento ativo pregado pela ONU (foto: Arquivo EM)

D�a Januzzi � jornalista e rebelde. Faz parte de uma gera��o que mudou comportamentos. Formada em comunica��o social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1974, trabalhou como rep�rter especial e subeditora do caderno Gerais por 39 anos. Foi tamb�m autora da coluna Cora��o de M�e, no caderno Bem Viver. Criadora do blog “Novos Velhos”, aos 65 anos, � militante do envelhecimento ativo pregado pela Organiza��o das Na��es Unidas (ONU). Endere�o do blog: www.deajanuzzi.com


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