Desde fevereiro, quando as sirenes dispararam pela primeira vez, Beatriz Palhares Ferreira, de 71 anos, mudou o tom e a suavidade de suas mensagens. Antes desse dia, eram fotos das 90 esp�cies de orqu�deas beirando a casa recentemente reformada. Daqui, as primas ficavam orgulhosas com tanto esmero. At� fevereiro, Beatriz mantinha a sua rotina de compras, aulas de teclado, de pilates duas vezes por semana e as caminhadas com o marido, Marco Aur�lio Ferreira, de 80 anos.
Beatriz sempre foi uma bela e serena mulher, uma dona de casa e tanto, que faz comidas de dar �gua na boca, borda, confecciona panos de prato como a m�e, Juracy Palhares. Casada h� 52 anos, enviou fotos das bodas de ouro, dos seis filhos, tr�s dos quais ainda moram na mesma cidade. Comemorou o nascimento dos cinco netos e a alegria da espera do bisneto Samuel. At� fevereiro deste ano, Beatriz poderia dizer que era uma pessoa tranquila, com uma vida suave como o correr de um rio, que tem cumprido sua miss�o de esposa, m�e, av� e dona de casa. Ela se cuida muito, canta e toca piano, faz parte do coral Querubim. � uma ativista do envelhecimento ativo, planta, colhe e at� 8 de fevereiro n�o se deixava vencer por pouco n�o.
Mas as sirenes dispararam e perturbaram a sua paz. O medo entrou, sem pedir licen�a, na casa charmosa, onde mora h� 48 anos, na Rua Ministro Cl�vis Salgado, em Bar�o de Cocais, a 90 quil�metros de BH. Beatriz n�o dorme mais, tem medo. A �ltima mensagem de Beatriz n�o mostrava flores no quintal nem comemora��es de datas especiais. Dizia: “Mais uma noite chegando e com ela nossa inseguran�a a respeito do que possa ocorrer com os moradores de Bar�o de Cocais. � noite, prima, tudo � pior. O Talude a cair, a barragem que pode se romper. S� mesmo f�, esperan�a e for�a em Deus nos acalmam. Que s�o Jo�o Batista possa interceder por n�s”.
Nem no Santu�rio de S�o Jo�o Batista ela vai mais � noite para a missa das 19h30. Tem medo de sair e n�o poder voltar. Mas como mulher forte e guerreira, ela resiste bravamente para n�o ver a fam�lia se desesperar. Ela se mant�m firme. J� colocou roupas de cama, documentos importantes, fotos, registros em cima dos arm�rios. O piano nem tem jeito de levantar, mas fotografou tudo. Como sempre, reza antes de dormir e ao acordar, mas agora com uma ang�stia que nunca sentiu. Um sono entrecortado, de olhos abertos e cora��o sobressaltado com o poss�vel rompimento da barragem de Congo Soco. A mineradora Vale do Rio Doce tirou a paz dos moradores de Bar�o de Cocais. Colocou o medo no lugar. Quem deu permiss�o para substituir paz por p�nico?
Beatriz se preocupa com tudo, mesmo que n�o expresse, at� com Chacal, o c�o que � parte da fam�lia h� anos. A lama nem chegou e Beatriz e Marco Aur�lio j� tiveram preju�zos. As casas que constru�ram para alugar, na Vila S�o Geraldo, ladeadas pelo Rio S�o Jo�o, foram todas desocupadas, pois est�o na rota da lama. Perderam todos os inquilinos. Sair de l� para onde? S�o 48 anos de hist�ria de vida e constru��o da fam�lia, de um patrim�nio que exigiu luta, esfor�o, economia e sacrif�cios.
O medo quebrou a rotina de Beatriz, desorganizou a vida dela, bagun�ou os sonhos e trouxe pesadelos que nunca teve. O banco da cidade virou container. O com�rcio desceu as portas. A vida virou de pernas para o ar. Antes, Beatriz ia tranquilamente visitar a filha Ana Paula nos Estados Unidos e a neta Gabriela que vai lhe dar um bisneto. Deixava a casa em Bar�o de Cocais sem medo, na certeza de que, ao voltar, tudo estaria como deixou. E agora, Jos�? J� sentenciou o poeta Carlos Drummond de Andrade, em in�meros textos denunciando as mineradoras que se apossaram de Minas, em nome de um lucro incont�vel. Em O maior trem do mundo, ele adverte: “Leva minha terra para a Alemanha. Leva minha terra para o Canad�. Leva minha terra para o Jap�o. O maior trem do mundo, puxado por cinco locomotivas a �leo diesel, engatadas, geminadas, desembestadas, leva meu tempo, minha inf�ncia, minha vida. Triturada em 163 vag�es de min�rio e destrui��o. O maior trem do mundo transporta a coisa m�nima do mundo. Meu cora��o itabirano. L� vai o maior trem do mundo. Vai serpenteando, vai sumindo e um dia, eu sei n�o voltar�. Pois nem terra nem cora��o existem mais”.
Ningu�m ouviu o poeta, mesmo depois que a barragem do Fund�o – operada pelo cons�rcio brit�nico BHP Billinton, Samarco e Vale – se rompeu e os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, desapareceram do mapa, sob o tsunami de lama.
O poeta n�o viu quando a Mina de Feij�o, em Brumadinho, da Vale do Rio Doce, se rompeu. Os Rios Doce e Paraopeba est�o mortos, amargam o descaso para com a natureza e o ser humano. Minas hoje tem a cara feia do medo!
* D�a Januzzi assina esta oluna quinzenalmente