
“A �nica coisa que sobrevive a uma �poca � a forma de arte que ela cria” � um dos postulados de Imagem e palavra, o mais recente filme de Jean-Luc Godard, que estreia nesta quinta-feira (14), no Brasil. Com o t�tulo original de O livro da imagem, o longa usa a arte do cinema, � qual Godard – hoje com 88 anos – se dedica desde a juventude, para fazer uma reflex�o sobre as grandes quest�es que, desde sempre, inquietaram o cineasta: a pol�tica, o poder, a viol�ncia, o sentido do tempo e a dificuldade do ser humano de ser fiel a si mesmo.
Em seus 84 minutos, Imagem e palavra se divide em cinco cap�tulos: 1) Remakes, 2) As noites de S�o Petersburgo, 3) Essas flores entre os trilhos, 4) O esp�rito das leis e 5) A regi�o central. Godard n�o escalou atores para interpretar um roteiro predeterminado. Ele produziu uma colagem de trechos de uma enormidade de filmes (e alguns v�deos) de diversos pa�ses e �pocas. Al�m de promover interven��es que distorcem uma parcela das cenas e de exigir dos distribuidores do filme que n�o traduzam diversas passagens com di�logos em l�nguas estrangeiras, Godard muitas vezes lan�a m�o do recurso da superposi��o, comum em sua filmografia. Um exemplo: enquanto sua voz em off diz que “� quase imposs�vel abolir a reciprocidade entre os homens. A viol�ncia � uma forma”, a tela mostra um texto com palavras rasuradas que resultam na frase “Decis�o �: colocar-se entre o ser e o n�o ser”. Em muitos casos, a m�sica � o elemento de superposi��o.
Nada parece gratuito em Imagem e palavra, embora a profus�o de elementos e a amplitude de refer�ncias no discurso de Godard deixem o espectador com uma sensa��o quase constante de que parte (ou muito!) do sentido do filme lhe escapa. Isso n�o � raz�o para rejeit�-lo, j� que Godard continua mestre em manter o espectador gostando de estar mergulhado em seu universo, mesmo quando se sente � deriva.
� particularmente interessante acompanhar o autor da provoca��o “o travelling � uma quest�o de moral” desenvolver suas ideias sobre a t�cnica do cinema, comparando, por exemplo, o uso do contraponto de uma imagem com o papel da melodia na m�sica. “N�o � sangue; � vermelho”, outra de suas frases antol�gicas, ecoa nas cativantes escolhas que ele faz de cenas rom�nticas em que os olhos desmentem o que a boca diz no di�logo entre os amantes. Mais uma vez, ele deixa claro seu fasc�nio pelo “real contraste entre a viol�ncia do ato de representar e a calma interna da pr�pria representa��o”.
REPRESENTA��O Tratando da representa��o no �mbito da pol�tica, Godard vai longe, sobretudo no cap�tulo final, em que se dedica sobretudo a descrever uma Ar�bia feliz (t�tulo emprestado de um livro de Alexandre Dumas), aos olhos do Ocidente. � nesse ponto do filme que o cineasta iguala “os homens de poder dos dias de hoje a criminosos sanguin�rios”, identifica que “toda ambi��o pol�tica finge ser em nome do bem-estar do povo”, observa que, entre as revolu��es, h� as verdadeiras e as falsas e fustiga com a declara��o: “De minha parte, estarei sempre do lado das bombas”. Isso depois de assegurar que “o mundo �rabe � uma paisagem” para os ocidentais, j� que o mundo, de fato, “n�o se interessa pelos �rabes”.
No cap�tulo anterior (O esp�rito das leis), � a situa��o da Europa que ganha destaque. E as palavras de Godard n�o s�o menos assertivas, ao identificar que faltam ao continente “as virtudes necess�rias” para adotar o sistema republicano “por princ�pio” e concluir que “a sociedade � fundada sobre um crime compartilhado”.
Antes disso, veremos Godard justapor imagens de insurg�ncias contra cortes europeias e a luta pela institui��o do Califado, tratar de desvairios de l�deres, citar os ideais comunistas e pausar a imagem sobre a l�pide de Rosa Luxemburgo com uma rosa vermelha depositada ao lado de seu nome.
H� muitas cenas de explos�es, assassinatos, repress�o e tortura em Imagem e palavra. H� uma reflex�o sobre a cobi�a e o abuso de poder. H� tamb�m uma rever�ncia ao potencial construtivo da m�o do homem, “os cinco dedos, os cinco sentidos, as cinco partes do mundo”. E h� um texto final que fala sobre a persist�ncia da esperan�a, mesmo diante de um cen�rio em que nada � como se pretendia que fosse. Imagem e palavra termina com uma palavra esperan�osa sobre a imagem de um corpo que cai. Em suma, esse � mais um filme em que Godard � fiel a si mesmo e ao seu gosto pelas contradi��es.