
Iacanga, interior de S�o Paulo, madrugada de 6 de junho de 1983. Com a chuva e o frio, parte do p�blico do Festival das �guas Claras, na Fazenda Santa Virg�nia, havia se recolhido em suas barracas. Eram quase 6 da manh� de uma segunda-feira, quando Jo�o Gilberto subiu ao palco. O p�blico – hippies, como a imprensa destacou na �poca –, pouco a pouco foi despertado pelo som de Jo�o e seu viol�o. Depois de um sil�ncio completo, a plateia come�ou a acompanh�-lo. Wave (Tom Jobim) � uma das can��es que Jo�o executa durante uma hora de apresenta��o.
O barato de Iacanga (2019), document�rio de Thiago Mattar, recupera a hist�ria do Woodstock paulista, que teve quatro edi��es numa cidadezinha qualquer (12 mil habitantes em 2014, segundo o IBGE). O ano mais c�lebre do festival foi precisamente o de 1983, pela improbabilidade de ter Jo�o Gilberto como atra��o de encerramento. O show seria realizado durante a noite, mas d� para imaginar os problemas t�cnicos que o evento enfrentou e a consequente dificuldade de colocar o not�rio perfeccionista no palco.
O filme de Thiago Mattar � um dos exemplos de como o cinema e a literatura se aproximaram do pai da bossa nova – morto aos 88 anos, no �ltimo dia 6 –, com a expectativa de desvendar o mist�rio por tr�s de um artista que n�o queria ser encontrado. O resultado comp�e um retrato fragmentado e inconclusivo, bem de acordo com a personalidade reclusa de Jo�o Gilberto e a singularidade de seu talento.
Lan�ado em abril passado, no festival � tudo verdade, O barato de Iacanga tem circulado por outras mostras no pa�s – no m�s passado, foi o filme de encerramento do CineOP, em Ouro Preto. Coproduzido pelo Canal Curta! e pela BigBonsai, o t�tulo dever� ser lan�ado no canal pago at� o fim do ano. Primeiro longa-metragem de Mattar, O barato de Iacanga surgiu por meio de uma hist�ria pessoal – a fam�lia do realizador � de Iacanga, e seu pai frequentou o festival.
Jo�o Gilberto aparece em n�o mais do que cinco minutos da hora e meia do document�rio. Al�m do momento do palco, o m�sico � visto dirigindo um carro no meio da lama. Mattar reconta a saga que foi convencer JG a se apresentar no Festival das �guas Claras, por meio de depoimentos dos produtores do evento. Naquele 1983, as demais atra��es eram Jorge Mautner, Sandra de S�, Raul Seixas e Erasmo Carlos.
EXIG�NCIAS “Naquela �poca, os produtores do festival estavam se profissionalizando, tanto que o evento teve uma estrutura grande. E o maior desafio dos produtores foi convenc�-lo a tocar ao ar livre”, conta o diretor. O evento seria televisionado pela Band. Conseguiram, de acordo com Mattar, at� que Jo�o Gilberto gravasse uma chamada para o canal (material hoje perdido). Uma das exig�ncias que ele fez para participar do festival foi um carro para ir do Rio de Janeiro a Iacanga dirigindo – 791 quil�metros separam as duas cidades. “S� que ele n�o tinha habilita��o, ent�o um produtor foi de copiloto durante o trajeto.” Como at� o final houve a d�vida sobre sua apresenta��o, no cartaz do festival s� havia Jo�o Gilberto como participa��o especial.
A participa��o se transformou em um show de uma hora, que est� devidamente guardada nos arquivos da Band. “Surpreendentemente, o material est� em �timo estado, ainda que precise de digitaliza��o completa e de uma nova mixagem de �udio”, diz Mattar. Dois meses depois do show de Iacanga, Jo�o Gilberto, que at� ent�o n�o tinha se apresentado ao ar livre, foi uma das atra��es do festival Bahia de Todos os Sambas, que ocorreu no Circo Massimo, em Roma – durante nove dias, tamb�m apresentaram-se Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil.
Na �poca, os cineastas Leon Hirszman e Paulo C�zar Saraceni registraram 36 horas de imagens, condensadas em 1h40 do document�rio Bahia de todos os sambas (1996). O lan�amento tardio foi em decorr�ncia de brigas na Justi�a (os produtores do show queriam tamb�m produzir o filme), falta de dinheiro e as mortes de Hirszman (1938-1987) e do italiano Gianni Amico (1933-1990), que idealizou o filme.
Outro registro importante � o do curta Brasil (1981), em que Rog�rio Sganzerla (1946-2004) acompanhou as grava��es do �lbum hom�nimo de Jo�o Gilberto – o disco foi gravado com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Beth�nia. “Todos os tr�s filmes t�m imagens colhidas no in�cio dos anos 1980. Neles, vemos como Jo�o Gilberto estava feliz naquele momento”, observa a jornalista Maria do Ros�rio Caetano, especialista em cinema brasileiro, que chama a aten��o para o fato de que, em Brasil, o cantor tamb�m aparece ao volante, uma de suas paix�es.
Al�m desses tr�s document�rios, Maria do Ros�rio destaca um filme de fic��o, material raro (mas dispon�vel no YouTube) dos anos 1960. Coprodu��o �talo-franco-brasileira, Copacabana Palace (1962), do cineasta italiano Steno, � uma com�dia que acompanha diferentes personagens no carnaval carioca, tendo o famoso hotel do t�tulo como pano de fundo. Um elenco italiano (Sylva Koscina e Walter Chiari s�o os protagonistas) se mistura com atores brasileiros, como T�nia Carrero e John Herbert.
O que importa nesse filme � um registro de quatro minutos. Na praia, assistimos a Luiz Bonf�, Jo�o Gilberto e Tom Jobim cantando Can��o do mar (Bonf� e Maria Helena Toledo) para tr�s aeromo�as italianas de biqu�ni. No meio da paquera, a mulher do personagem de Jobim chega, atrapalhando tudo. Mais tarde, assistimos aos personagens de Jo�o Gilberto e Luiz Bonf� (ambos de cal�a comprida e camisa na praia) jogando v�lei com duas italianas – tamb�m casados na fic��o, eles s�o interrompidos pela chegada dos respectivos filhos.
AUSENTE Al�m dos quatro filmes que t�m Jo�o Gilberto em cena, a jornalista aponta tr�s document�rios em que ele “� um ausente onipresente”: Onde est� voc�, Jo�o Gilberto? (2018), de Georges Gachot, que recupera o percurso feito no Brasil pelo jornalista alem�o Marc Fisher para escrever o livro Ho-ba-la-l� – � procura de Jo�o Gilberto (2011); A m�sica segundo Tom Jobim (2012), de Nelson Pereira dos Santos e Dora Jobim; e Os filhos de Jo�o – O admir�vel mundo novo baiano (2009), de Henrique Dantas.
“No filme de Nelson Pereira dos Santos, Jo�o Gilberto aparece de relance, num �timo, que a gente perde, se n�o prestar aten��o. Jo�o est� acompanhando Elizeth Cardoso na grava��o do �lbum Can��o do amor demais (1958, marco inicial do que viria a ser a bossa nova)”, diz Maria do Ros�rio Caetano. Os filhos de Jo�o recupera a trajet�ria dos Novos Baianos. A c�lebre visita de Jo�o Gilberto, durante uma madrugada, ao apartamento em Botafogo onde o grupo vivia, influenciou definitivamente sua m�sica, gerando o antol�gico �lbum Acabou chorare (1972). “Henrique Dantas foi uma das v�timas do pr�prio Jo�o Gilberto em impedir o uso da imagem. Este encontro � parte substantiva da hist�ria dos Novos Baianos, e o diretor teve que usar uma imagem do Jo�o, uma foto em preto e branco, dividida em tr�s partes, porque n�o conseguiu autoriza��o dele para us�-la.”
Pernonagem Arredio
Na literatura, Jo�o Gilberto � tratado sob o prisma da biografia, da fic��o e da fantasia. M�sico foi � Justi�a para tentar proibir circula��o de livro que reproduzia "entrevistas desnecess�rias"

Todo grande artista tem uma, quando n�o mais, biografia de f�lego. Mas n�o Jo�o Gilberto (1931-2019). Em 2012, pela Cosac Naify, o professor da Universidade de S�o Paulo (USP) Walter Garcia (que havia publicado em 1999 a an�lise Bim bom – A contradi��o sem conflitos de Jo�o Gilberto, com pref�cio de Caetano Veloso), organizou o volume Jo�o Gilberto. A antologia de 500 p�ginas re�ne ensaios sobre a obra do m�sico baiano, fotografias, depoimentos e entrevistas suas publicadas na imprensa.
Mesmo que o livro n�o fizesse refer�ncias � vida pessoal do cantor, compositor e violonista, Jo�o Gilberto entrou em uma disputa judicial com a Cosac Naify, pedindo o recolhimento da obra. � �poca do lan�amento, ele havia dito, por meio de seu advogado, que o livro foi publicado sem autoriza��o e “com algumas reportagens desnecess�rias” sobre ele. Perdeu a disputa. O livro n�o foi recolhido e teve todos os exemplares vendidos. Como n�o houve nenhuma reedi��o e a editora encerrou suas opera��es em 2017, o livro s� pode ser encontrado hoje em edi��es usadas.
Chega de saudade (1990), de Ruy Castro, uma esp�cie de biografia da bossa nova, d� o devido destaque a JG. Outro relato biogr�fico � o perfil Jo�o Gilberto (2001), de Zuza Homem de Mello, escrito para a cole��o Folha Explica. Publicado pela editora 34, Anos 70 Novos e Baianos (1997), de Luiz Galv�o, aborda o c�lebre encontro de Jo�o Gilberto com a turma de Baby Consuelo, Pepeu Gomes e Moraes Moreira.
Na fic��o, Jo�o Gilberto gerou o romance Ho-ba-la-l� – � procura de Jo�o Gilberto (2011), do jornalista alem�o Marc Fischer. Um apaixonado pela bossa nova, ele chega ao Rio tentando, de forma obsessiva, se encontrar com o �dolo. Fischer, que se matou �s v�speras do lan�amento do livro, faz do romance um divertido thriller – ele se autointitula Sherlock, e d� o nome de Watson � tradutora carioca que o ajudou na procura pelo cantor em diversos pontos do Rio de Janeiro.
Jo�o Gilberto d� t�tulo a dois livros de contos. Foi em 1982 que S�rgio Sant'Anna publicou a antologia O concerto de Jo�o Gilberto no Rio de Janeiro. “Fico satisfeito de ele ter sido publicado muito antes da morte dele, pois aquele concerto que ele n�o deu no Rio foi muito polemizado”, comenta hoje Sant'Anna, que, com a morte do cantor, preferiu se manter � dist�ncia. “Esgotei o assunto na �poca e a �ltima homenagem que fiz a ele foi o sil�ncio”, comenta.
CANEC�O O concerto a que Sant'Anna se refere foi um show no Canec�o que Jo�o Gilberto se recusou a fazer – depois de um di�logo improdutivo com os t�cnicos de som, ele desistiu da apresenta��o na ent�o famos�ssima casa de shows carioca. “Muita gente reclamou na �poca, mas, na minha opini�o, ele estava certo, pois sempre foi um perfeccionista.” No conto, bastante fragmentado, Sant'Anna mistura a si mesmo, amigos e artistas (um dos destaques � o diretor Antunes Filho) com Jo�o Gilberto. Quase 40 anos atr�s, o autor fez autofic��o, muito antes de o termo entrar na moda. “O n�o concerto de Jo�o Gilberto � a coisa mais real do conto”, diz o escritor.
A frase inicial do conto de Sant'Anna – “John Cage ofereceu a gaiola vazia a Jo�o Gilberto e disse que era um presente de despedida” – foi reproduzida pelo escritor S�rgio Rodrigues na abertura de A visita de Jo�o Gilberto aos Novos Baianos (Cia. das Letras). Lan�ado em junho passado, poucas semanas antes da morte de Jo�o Gilberto, a antologia de contos � aberta por uma bem-humorada hist�ria que mistura mexerica, disco voador e maconha.
“Na verdade, a hist�ria surgiu a partir de um encontro casual em um restaurante com o Dadi (baixista que integrou os Novos Baianos), que, at� ent�o, eu n�o conhecia. Sa� do almo�o com o t�tulo A visita de Jo�o Gilberto aos Novos Baianos na cabe�a. Ou seja, ele surgiu antes da hist�ria”, conta Rodrigues, que vir� a Belo Horizonte para autografar seu livro no pr�ximo dia 13. Embora seja o conto de abertura do volume, foi o �ltimo a entrar. “E, de alguma forma, ele organizou o livro, deu um certo esp�rito a ele, pois um livro de contos n�o � s� juntar hist�rias aleat�rias”, afirma Rodrigues.
NA ESTANTE
A visita de Jo�o Gilberto aos Novos Baianos
S�rgio Rodrigues
Companhia das Letras (152 p�gs.)
Pre�o sugerido: R$ 44,90
Bim bom – A contradi��o sem conflitos de Jo�o Gilberto
Walter Garcia
Paz e Terra (224 p�gs.)
Esgotado (dispon�vel apenas em sebos, a partir de R$ 350)
Chega de saudade
Ruy Castro
Companhia das Letras (536 p�gs.)
Pre�o sugerido: R$ 82,90
Ho-ba-la-l� – � procura de Jo�o Gilberto
Marc Fischer
Companhia das Letras (184p�gs.)
Esgotado
Jo�o Gilberto
Walter Garcia
Cosac Naify
Esgotado
Jo�o Gilberto
Zuza Homem de Mello
Publifolha (128 p�gs.)
Esgotado
O concerto de Jo�o Gilberto no Rio de Janeiro
S�rgio Sant'Anna
Companhia das Letras (224 p�gs.)
Pre�o sugerido: R$ 52,90