Amigos na vida real se tornaram pai e filha em 'No cora��o do mundo'
O diretor e dramaturgo Eid Ribeiro e a atriz Kelly Crifer contam como foi dividir o set no filme dos irm�os Gabriel e Maur�lio Martins, em cartaz no cinema
postado em 10/08/2019 04:00 / atualizado em 10/08/2019 12:16
Eid Ribeiro e Kelly Crifer em cena de No cora��o do mundo, filme que est� em cartaz em Belo Horizonte, no cine Belas Artes, e em Contagem
(foto: Emba�ba Filmes/Divulga��o)
“N�o � um pequeno papel. N�o existe pequeno papel. S�o pap�is. E adorei o meu.” Com mais de 50 anos dedicados a criar personagens e dirigir atores interpretando-os, o dramaturgo e encenador Eid Ribeiro tem autoridade para falar do assunto. No caso espec�fico, refere-se ao seu pr�prio personagem no longa-metragem No cora��o do mundo, dos diretores Gabriel e Maur�lio Martins, em cartaz desde quinta-feira passada (8) nos cinemas.
Eid Ribeiro aparece na trama durante poucos minutos e n�o diz sequer uma palavra. Entretanto, sua presen�a como o pai de Ana (Kelly Crifer) � fundamental para a compreens�o da complexidade dessa personagem, central na trama, que trata de pessoas comuns lidando com seus problemas cotidianos e seus sonhos em Contagem.
“A Kelly me indicou (para o papel)”, conta o diretor e ator bissexto. “Precisavam do personagem e chamaram o (diretor e dramaturgo) Jo�o das Neves (1935-2018). Ele n�o p�de e acabei fazendo. Achei �timo. Sempre gosto de dar for�a para o cinema. � tudo t�o caro e t�o dif�cil no Brasil.” Antes do convite dos cineastas Gabriel e Maur�lio Martins, ele j� havia somado � sua riqu�ssima trajet�ria teatral participa��es como assistente de dire��o no longa A dan�a dos bonecos (1986) e uma colabora��o no roteiro de Uma onda no ar (2002), ambos de Helv�cio Ratton. Tamb�m atuou em duas produ��es do filho Tiago Mata Machado: O quadrado de Joana (2007) e Gaio Filho (2008).
Desta vez, aos 76 anos, Eid emprestou seu talento e experi�ncia aos realizadores que levaram o bairro Jardim Laguna, em Contagem, para o “cora��o do mundo”. “Gostei muito da experi�ncia com o pessoal da Filmes de Pl�stico, principalmente por ser em Contagem. Achei t�o bonita a conviv�ncia ali, a vizinhan�a – tia, av�, m�e presentes. Uma vizinha empresta isso, outra aquilo”, afirma. O t�tulo foi exibido no Festival de Roterd�, na Holanda, em janeiro deste ano.
Na hist�ria, Ana trabalha como trocadora na linha de �nibus que vai do Laguna para BH e passa as viagens pensando em, um dia, se mudar dali. Entre os motivos que a prendem a Laguna est�o os cuidados com o pai, debilitado pela dem�ncia, com quem divide a casa.
Ator e atriz posam para foto na casa de Eid Ribeiro, na capital mineira (foto: Leandro Couri/EM/D.A.Press)
"Gostei muito da experi�ncia com o pessoal da Filmes de Pl�stico (produtora do longa), principalmente por ser em Contagem. Achei t�o bonita a conviv�ncia ali, a vizinhan�a - tia, av�, m�e presentes. Uma vizinha empresta isso, outra aquilo"
Eid Ribeiro, ator, dramaturgo e diretor
Machismo
“H� uma hist�ria para al�m daquela. A rela��o dele com a m�e dela, que j� morreu, foi sempre machista. A Ana se v� numa situa��o que a faz pensar na falta de coragem da m�e. E a� pulsa muito para ela aquela rela��o de afeto com o pai, que �, ao mesmo tempo, de c�rcere. A depend�ncia do pai a deixa presa naquele bairro, naquela casa, cuidando dele. Ela topa o risco com o namorado, mas v� um julgamento do pai, do homem que julga a liberdade da mulher, de forma muito forte, com o olhar”, afirma Kelly Crifer.
Na tela, a rela��o entre pai e filha se d� com poucas palavras, mas muita for�a gestual. Ela faz a barba do pai, troca a fralda dele, prepara as refei��es, sempre com delicadeza e afeto, mas transparecendo um inc�modo imposto pela situa��o.
Se as cenas exigiram sensibilidade e cumplicidade, a dupla tinha as credenciais para enfrentar o desafio. Tamb�m com uma carreira no teatro, Kelly se refere a Eid como “um mestre”, que conheceu no come�o dos anos 2000, quando iniciou sua trajet�ria nas artes c�nicas com um espet�culo circense chamado Senta que o le�o � manso. “Ele me incentivou muito no teatro, desde a �poca em que eu estava na UFMG, me deu livros e, depois, nos reencontramos, em 2011, quando ele me dirigiu na pe�a Antes do sil�ncio (espet�culo vencedor do Pr�mio Sesc/Sated daquele ano). Ent�o foi uma �tima surpresa ele ser meu pai no filme”, diz a atriz, que � tamb�m professora do Grupo Galp�o h� oito anos.
Confira o trailer de 'No cora��o do mundo':
Sobre a conviv�ncia com Eid Ribeiro no set, Kelly comenta: “Fiquei impressionada quando entrei na casa onde seriam as filmagens e ele estava olhando tudo, cada detalhe. No set, ele me ensinava e me mostrava como � importante observar as paredes, porque o tipo de coisa na casa j� contava sobre os moradores que a habitam. Ele ficava um tempo grande observando, construindo o personagem. Foi uma honra muito grande estar ali”. Houve, no entanto, uma dificuldade para Kelly. “A cena em que tive que dar um tapa na cara dele foi muito dif�cil, quase n�o consigo”, diz.
Ao longo dos 40 dias que passou no bairro Laguna para a produ��o do longa, a atriz perdeu o pai, o que acabou aumentando sua liga��o com o pai ficcional. “Isso me fortaleceu muito. Pude transformar em pot�ncia de vida, de arte e isso me trouxe uma coisa louca em rela��o ao in�cio e ao fim das coisas”, afirma ela.
"A rela��o dele com a m�e dela, que j� morreu, foi sempre machista. A Ana (personagem de Kelly Crifer) se v� numa situa��o que a faz pensar na falta de coragem da m�e. E a� pulsa muito para ela aquela rela��o de afeto com o pai, que �, ao mesmo tempo, de c�rcere. A depend�ncia do pai a deixa presa naquele bairro, naquela casa, cuidando dele"
Kelly Crifer, atriz e professora de teatro
Concentra��o
A sintonia entre os dois tamb�m passou pela experi�ncia nos palcos, transportada para as c�meras. “O cinema � outra coisa para o ator”, observa Eid, que atribui uma import�ncia muito grande ao ambiente onde as filmagens se d�o. “Num filme, � a coisa f�sica ali naquele espa�o. Exige uma concentra��o muito grande. No teatro, o espa�o � ilus�rio, isso traz uma energia diferente, tamb�m na rela��o com quem voc� contracena”, explica. Kelly tem um ponto de vista parecido e considera que “o cinema � mais solit�rio. H� uma equipe enorme, mas a hist�ria est� ali com voc�, enquanto o teatro � mais coletivo”.
Por�m, ter participado do curta Contagem (2010), dos mesmos cineastas, interpretando a mesma personagem, facilitou o processo para a atriz. “Fui muito feliz de o Gabriel e o Maur�lio (Martins) terem me encontrado no teatro. O cinema geralmente tem personagens prontos, mas, neste caso, foi mais aberto, mais colaborativo. Isso permitiu potencializar esse lugar de fala que o artista do teatro carrega fortemente. Estar em cena � se colocar no lugar do outro e o posicionamento do meu corpo � o recurso”, diz ela. Al�m de Kelly Crifer e Eid Ribeiro, o elenco de No cora��o do mundo tem Grace Pass�, cuja carreira tamb�m se divide entre cinema e teatro. “Nesse filme, eles trabalham muito o pertencimento. S�o apaixonados pelos personagens. E n�s tamb�m trazemos isso do teatro”, observa Kelly.
Eid diz j� ter tentado fazer mais coisas no cinema, mas perdeu o �nimo por causa dos custos elevados de produ��o e das dificuldades de distribui��o. “O imperialismo americano continua, cinemas de shopping cheios, e os filmes brasileiros ficam � margem. Vai pouca gente e sai de cartaz. E a coisa est� piorando, obviamente, neste governo”, diz o diretor. No entanto, ele identifica um movimento positivo, do qual No cora��o do mundo faz parte. “O cinema brasileiro est� ganhando outra caracter�stica no olhar diferenciado e no tratamento dos locais onde os filmes s�o rodados. A periferia e o bairro est�o voltando �s telas. Vemos isso aqui, com a Filmes de Pl�stico, em Bras�lia, em Pernambuco. Est�o trazendo de volta a linguagem e a for�a do povo, como o Cinema Novo fez.”
Ainda dentro do aspecto mais otimista de sua vis�o, ele exalta a “pupila”, com quem teve “um emocionante reencontro” em cena. “Ela � muito talentosa e concentrada no trabalho. Tem essa fortaleza toda, que j� mostrava desde o circo. Acredito que a Kelly v� estourar no cinema brasileiro depois desse longa.”