Livro conta como pol�cia transformou v�tima de estupro nos EUA em vil�
Em 'Falsa acusa��o', os jornalistas Ken Armstrong e T. Christian Miller mostram como a mentalidade machista contamina a investiga��o de crimes sexuais. Reportagem inspirou a s�rie 'Inacredit�vel', da Netflix
postado em 24/09/2019 04:00 / atualizado em 23/09/2019 17:45
Marie Addler (Kaitlyn Dever) � interrogada por policiais na s�rie Inacredit�vel (foto: Beth Dubber/divulga��o)
Ken Armstrong prestou aten��o no caso de Marie, uma garota de 18 anos violentada perto de Seattle, em 2011, quando a reviravolta na investiga��o para prender um estuprador em s�rie trouxe o rosto da adolescente de volta aos jornais. Dois anos antes, Marie havia sido acusada de mentir para a pol�cia do estado de Washington sobre o estupro que teria sofrido dentro de casa. A menina foi pressionada a escrever uma declara��o assumindo a falsa acusa��o, e o caso foi encerrado.
Do outro lado dos Estados Unidos, no Colorado, o rep�rter T. Christian Miller acompanhava as investiga��es de um caso de estupros em s�rie que abalou o estado. Foram necess�rios apenas alguns meses para a pol�cia conectar os crimes de Washington com os do Colorado. Antes disso, Miller e Armstrong perceberam que trabalhavam na mesma reportagem e decidiram unir for�as.
Foi assim que come�aram a tomar forma as mat�rias publicadas, na �poca, nos sites Project Marshall e e ProPublica, que mais tarde se transformaram no livro Falsa acusa��o – Uma hist�ria verdadeira. Rec�m-lan�ada no Brasil pela Leya, a reportagem inspirou a s�rie Inacredit�vel, que estreou na Netflix no �ltimo dia 13, com oito epis�dios sobre as investiga��es para prender o estuprador Marc O’Leary, cuja crueldade e m�todos espantaram a pol�cia.
Em 2016, Miller e Armstrong ganharam o Pr�mio Pulitzer com a reportagem A inacredit�vel hist�ria de um estupro, tema de uma s�rie de podcasts no site This American Life, sob o t�tulo Anatomy of doubt. Na mesma �poca, a dupla foi procurada por produtores de cinema e televis�o interessados em roteirizar a hist�ria. Coube a Marie Addler escolher transform�-la em miniss�rie e vender os direitos para a Netflix. A atriz Kaitlyn Dever faz o papel da garota.
FALSA ACUSA��O: UMA HIST�RIA VERDADEIRA
. De T. Christian Miller e Ken Armstrong . Tradu��o: Daniela Belmiro . Leya . 334 p�ginas . R$ 49,90
“Foi uma decis�o tomada principalmente por ela, que analisou a melhor op��o. Uma das vantagens de deixar que a Netflix fizesse foi n�o confinar essa hist�ria a duas horas de filme. � uma hist�ria complicada, uma narrativa dupla. Metade se passa no estado de Washington e a outra metade no Colorado. Contar isso em oito partes permitiu dar conta da complexidade, muito mais do que daria em um filme”, garante Armstrong. Al�m de Marie, detinham os direitos da hist�ria o ProPublica, o Marshall Project e o site This American Life.
O livro foca, principalmente, na hist�ria de Marie Addler, e na pr�pria investiga��o. Criada em lares adotivos, egressa de uma fam�lia disfuncional e v�tima de abusos desde a inf�ncia, a garota n�o apresentou, durante o depoimento, o que os investigadores – todos homens – consideravam ser o comportamento de uma pessoa estuprada. Alegaram que, durante o relato � pol�cia, os detalhes n�o “batiam”. O passado inst�vel da v�tima contribuiu para a postura comum nesse tipo de investiga��o: desacreditar a v�tima da viol�ncia com base em observa��es superficiais e discriminat�rias.
Dois cap�tulos foram dedicados ao perfil de Marc O’Leary, sobre quem Miller e Armstrong evitaram falar nas reportagens. “Foi uma decis�o muito consciente”, explica Armstrong, que acumulou tr�s horas de entrevistas com o criminoso e teve acesso a uma grava��o de quatro horas feita pelo FBI.
“Nos epis�dios de This american life, n�o quer�amos dar voz ao criminoso porque seria uma distra��o e poderia, de alguma forma, desviar da mensagem principal da hist�ria. No livro, tivemos mais oportunidade de contextualizar (o caso) e sentimos que havia a oportunidade de explorar um pouco mais o perfil dele”, diz o jornalista.
ENTREVISTA KEN ARMSTRONG, JORNALISTA “O caso de Marie n�o � �nico”
(foto: Steve Ringman/Divulga��o)
''A mulher � atacada sexualmente e duvida-se dela. E n�o apenas isso. Ela � acusada de crime por mentir, mesmo que as evid�ncias mostrem que est� dizendo a verdade''
KEN ARMSTRONG, jornalista
Quando voc� ouviu falar na hist�ria de Marie pela primeira vez? Quando se deu conta de que havia ali uma reportagem?
Moro em Seattle, Washington, perto de onde Marie foi atacada. Vi a hist�ria pela primeira vez nos jornais. Vi a hist�ria de que ela havia sido acusada por n�o dizer a verdade, e depois teve uma reviravolta porque ela estava dizendo a verdade. Li uma mat�ria sobre a pris�o do estuprador e sobre a hist�ria de Marie. Achei que faltava, nessas hist�rias, a voz de Marie, suas considera��es pessoais. E algo que contasse detalhadamente a investiga��o da pol�cia. Esperava que Marie talvez quisesse compartilhar o que passou e que eu pudesse reconstituir a investiga��o policial para mostrar os erros que cometeram, como as d�vidas come�aram, como isso se espalhou e como chegaram aonde chegaram.
Qual foi o maior desafio para reconstituir essa hist�ria?
O maior desafio foi pedir �s pessoas que falassem sobre uma das coisas mais dolorosas por que elas j� passaram. Pedi, duas vezes, a Marie que me contasse sobre o ataque, sobre ter sido sexualmente atacada e sobre terem duvidado dela. E pedi aos pais adotivos de Marie para falar sobre algo de que se arrependeram profundamente, ou seja, as d�vidas que tiveram, e tamb�m sobre as d�vidas das pessoas. Tivemos de lidar com todas as emo��es que emergiram disso. Falei com a pol�cia tamb�m. Muitas vezes, a pol�cia tem dificuldades em pedir desculpas pelos erros que comete e em falar sobre isso. Nesse caso, a pol�cia fez os dois: pediu desculpas e falou sobre o que aprendeu com os erros. A coisa mais dif�cil foi pedir �s pessoas que falassem sobre algo muito doloroso.
Como voc�s selecionaram o que entrou no livro e o que ficou para a reportagem? Em termos de informa��o, os dois textos s�o muito diferentes?
O livro nos deu a oportunidade de avan�ar mais profundamente na hist�ria, de dar mais o contexto (em que ela ocorreu). Uma das coisas que T. e eu realmente quer�amos enfatizar � que o caso de Marie n�o � �nico. Mesmo que seja inimagin�vel, h� outros casos assim em todo o pa�s – uma mulher � atacada sexualmente e duvida-se dela. E n�o apenas isso. Ela � acusada de crime por mentir, mesmo que as evid�ncias mostrem que est� dizendo a verdade. No livro, quer�amos falar de outros casos e tamb�m entrar na hist�ria do sistema legal americano para mostrar como esses equ�vocos e preconceitos est�o entranhados no sistema. Por anos, o sistema americano legal basicamente estabeleceu a presun��o de que � preciso duvidar das mulheres quando elas dizem que foram atacadas. N�o temos um conjunto de instru��es, somos instru�dos a ser c�ticos em rela��o a ataque sexual. O livro permite contar melhor a hist�ria e dar o contexto em que ela ocorreu.
Isso est� mudando?
� uma pergunta dif�cil. Em alguns departamentos, est� melhorando. O de Lynwood, que atendeu ao caso de Marie, � um exemplo: os detetives recebem treinamento melhor e preven��o para n�o acontecer novamente. Mas � dif�cil. Algumas ag�ncias est�o melhor treinadas para atender a casos de viol�ncia contra a mulher, mas algumas, infelizmente, n�o fizeram ainda as mudan�as necess�rias. Ainda podemos encontrar muitos equ�vocos sobre como se comporta uma pessoa com trauma. Ainda h� muitos policiais que acreditam que h� apenas uma maneira de reagir quando voc� � atacado, e algu�m que n�o reage dessa maneira perde credibilidade e se torna suspeito.
Um cap�tulo do livro � dedicado a Marc O’Leary, o estuprador. Por que dedicaram um cap�tulo a ele?
Penso como o FBI, que considerou fundamental entrevist�-lo para aprender o m�ximo com ele, porque isso oferece uma oportunidade de aprender, de sabermos como ele se organizou para escapar por tanto tempo, quais eram os passos que adotava para evitar ser identificado. O livro � uma oportunidade de mostrar como ele, basicamente, reconheceu as falhas do sistema e tirou vantagem disso. Quanto mais se entende isso, melhores as escolhas para prevenir a escapada do pr�ximo Marc O’Leary. Durante a entrevista, foi nisso que focamos: como ele sabia como a pol�cia trabalhava, e que se cometesse um crime em uma jurisdi��o e outro em outra, teria menos chances de ser pego.
Como foi a sua participa��o na s�rie produzida pela Netflix?
N�o participamos da reda��o do roteiro, mas como consultores. Nos encontramos com Susannah Grant e Michael Chabon, o produtor executivo, desde o in�cio. O que fizemos, basicamente, foi mostrar a eles os registros p�blicos, explicar como coletamos as informa��es, para que pudessem ter ampla compreens�o de como aconteceu. Tentamos ter certeza de que as perguntas fossem respondidas, perguntas sobre criminologia, sobre a timeline. Mas n�o participamos do roteiro. Somos jornalistas, n�o roteiristas. E gostamos muito de ter essa linha divis�ria. Est�vamos ali para dar qualquer informa��o que pud�ssemos para que eles pudessem fazer tudo da maneira mais real poss�vel.
As jornalistas Megan Twohey e Jodi Kantor denunciaram o produtor Harvey Weinstein (foto: Youtube/reprodu��o)
V�timas de uma cultura O descr�dito da v�tima, a desconfian�a em rela��o �s mulheres e julgamentos que levam a resultados catastr�ficos tamb�m s�o tema de As bruxas – Intriga, trai��o e histeria em Salem, livro-reportagem de Stacy Schiff, outra vencedora do Pr�mio Pulitzer, publicado pela Editora Zahar. A autora investiga as den�ncias e o p�nico coletivo que se instalou em Salem, cidade de Massachusetts (EUA), no s�culo 17, quando v�rias mulheres acabaram na forca acusadas de bruxaria.
Focado em um caso mais recente, mas, ainda assim, cercado de segredos e acobertado pela cultura que combina poder e machismo, o livro She said: breaking the sexual harassment story that helped ignite a movement (Random House) � assinado pelas jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey, ambas vencedoras do Pulitzer e respons�veis pelas primeiras reportagens que denunciaram o produtor de cinema Harvey Weinstein por ass�dio sexual.
Publicada em outubro de 2017, a mat�ria de Jodi e Megan trazia entrevistas com atrizes e ex-empregados de Weinstein sobre como uma rede ajudou a dissimular os crimes de ass�dio e viol�ncia sexual cometidos pelo produtor mais rico e poderoso dos Estados Unidos. No livro, as autoras exploram os meandros dessa hist�ria e suas consequ�ncias. She said... teve os direitos comprados pela Companhia das Letras e deve chegar ao Brasil no primeiro semestre de 2020.