
Piratas do Tiet� � o nome da s�rie de quadrinhos criada pela cartunista Laerte Coutinho no come�o dos anos 1980. Navegando pelo rio paulistano, o bando busca v�timas para saquear ou simplesmente torturar, por mera divers�o. Apesar do sucesso dos personagens, eles foram abandonados por seu criador.
“Aquelas piadas acabaram soando meio machistas, at� homof�bicas. A ideia do caos e da estupidez n�o � uma coisa que eu produziria nos dias de hoje. � uma realidade muito diferente de mim, foi coisa de uma �poca. Criei e produzi aquilo do modo como eu era e enxergava as coisas, mas tudo mudou”, explica Laerte, que se assumiu mulher transg�nero em 2010.
N�o � que rejeite os piratas ou qualquer outro de seus desenhos, mas o mundo girou, afirma a cartunista. “E eu girei com ele. Enquanto autora da minha obra, �s vezes fico tentada a renegar parte dela. Mudei muito, mas � um erro renegar n�o s� o pr�prio trabalho como o dos outros. Deve-se buscar compreender as coisas dentro de cada contexto”, afirma Laerte.
Talvez esse tenha sido um dos empecilhos – al�m da quest�o or�ament�ria – para o diretor ga�cho Otto Guerra, um dos nomes mais importantes da anima��o brasileira, concretizar o filme, que levou quase 20 anos para ser conclu�do. O roteiro, ali�s, teve v�rias vers�es.
A cidade dos piratas, que estreia nesta quinta-feira (31) em BH, une as trajet�rias de Otto e Laerte. Quando trabalhavam juntos neste projeto, ambos passaram por mudan�as pessoais e doen�as inesperadas. “Como o pr�prio pai, ou melhor, a pr�pria m�e, renega seus filhos?”, queixa-se o cineasta em uma das cenas.
O filme, que ganhou men��o honrosa no Festival de Cinema de Gramado em 2018, � considerado por Otto sua obra mais pol�mica e libertadora. “Pelo fato de ter descoberto um c�ncer no meio do caminho, achei que ia morrer e aquele seria meu �ltimo trabalho, meu epit�fio. Ent�o, quis fazer tudo o que tinha vontade”, ressalta.
"Achei que ia morrer e aquele seria meu �ltimo trabalho, meu epit�fio. Ent�o, quis fazer tudo o que tinha vontade''
Otto Guerra, diretor
Assim como Laerte, o diretor se transformou em um personagem de anima��o. “Foi a primeira vez que isso aconteceu na minha carreira. O roteirista me sacaneou (risos). N�o sou aquele diretor autorit�rio que ele mostra ali, apesar de ter brigado com a equipe no decorrer do processo”, brinca o diretor, que se recuperou do c�ncer no c�lon.
Num de seus di�logos, o filme � tachado de “vanguarda” e “nada feij�o-com-arroz”. Otto Guerra sempre se identificou com o universo da tr�ade de cartunistas formada por Angeli (fonte de inspira��o de seu longa Wood & Stock: sexo, or�gano e rock'n'roll), Glauco (assassinado em 2010) e Laerte. “Eles criaram personagens transgressores, undeground, algo que tem muito a ver comigo. Bebemos nas mesmas fontes.”
O cineasta avisa que � dif�cil rotular A cidade dos piratas. “N�o � fic��o nem document�rio. Nem tem hist�ria linear. Filme fora do padr�o, est� baseado no sistema marginal, an�rquico. Esse � um longa que n�o � para entender, mas para assistir muitas vezes e sentir.”
De acordo com Laerte, mesmo um pouco ca�tico e confuso, A cidade dos piratas consegue transmitir a sua mensagem e fazer sentido. “� assim tamb�m com o Brasil. Ele n�o deixa de ser uma met�fora. O pa�s est� ca�tico, mas existe um sentido e � isso que nos orienta em rela��o �s ideias e movimentos.”
HOMOFOBIA
Por meio da hist�ria do Brasil – inclusive fatos recentes –, o filme busca fazer uma reflex�o sobre arte, cultura pop e a sociedade contempor�nea. Personagens de Laerte – como o pol�tico homof�bico Azevedo, que sonha com genit�lias e ganhou voz de Marco Ricca – s�o parte do cotidiano do pa�s. Por outro lado, h� Ivan (dublado por Matheus Nachtergaele), que esconde da mulher o prazer de se travestir.
“Essas quest�es e figuras pertencem, relativamente, ao cen�rio cultural e pol�tico brasileiro. Em qualquer �poca voc� encontra gente mais autorit�ria, gente mais democr�tica. Nesse sentido, o filme n�o � prof�tico, mas n�o deixa de ser um alerta para v�rias coisas, inclusive a homofobia que estamos vivendo atualmente. A onda de conservadorismo est� mais forte”, conclui Laerte.