
''Os alem�es quiseram o regime e o apoiaram at� o fim''
Nora Krug, escritora
Quando se mudou da Alemanha – primeiro para Londres, depois para Nova York – h� mais de 17 anos, a ilustradora Nora Krug se deu conta de que sabia pouqu�ssimo sobre as atividades de seus antepassados durante a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, a artista passou a observar como a identidade germ�nica era vista no resto do mundo: um povo que acolheu o regime nazista e consentiu a execu��o do maior genoc�dio em solo europeu no s�culo 20. Juntando o sentimento de culpa cultivado desde a guerra pela sociedade alem� com os olhares enviesados que recebia ao revelar sua nacionalidade, a artista percebeu que havia ali um tema rico a ser explorado. A culpa � algo que gera��es do p�s-guerra sempre carregaram, mas a forma como a sociedade alem� decidiu lidar com esse sentimento n�o � das mais eficientes, acredita Nora.
Pensando nisso, ela come�ou a escrever Heimat – Pondera��es de uma alem� sobre sua terra e hist�ria, livro ilustrado com quadrinhos que trata com muito cuidado e bastante autocr�tica o passado recente da Alemanha. Heimat � uma palavra dif�cil de traduzir. Significa casa, lar, n�o necessariamente um espa�o f�sico e, �s vezes, at� uma ideia. � um termo um tanto maldito, do qual a ideologia nazista se apropriou para definir o territ�rio germ�nico reservado � ra�a ariana. Utiliz�-lo como t�tulo de um livro poderia causar rea��es ruins, mas a ilustradora quis arriscar, pois percebe na extrema-direita em ascens�o em seu pa�s a mesma propens�o nazista em se apropriar da ideia heimat.
No livro, Nora retoma a hist�ria de seus familiares. Quer descobrir como eles se posicionaram diante do nazismo na d�cada de 1930, quando Adolf Hitler chegou ao poder. Colaboraram? Lutaram? Resistiram? Pesquisas em arquivos de sua cidade natal, Karlsruhe, levaram-na aos av�s e a um tio morto durante a guerra, aos 18 anos, depois de se alistar nas tropas nazistas. Nora se deparou com o fato de que o av� foi um “seguidor”, classifica��o estabelecida no p�s-guerra para diferenciar os que aderiram ou n�o ao regime. Filiado ao Partido Nazista, ele lutou, vestiu uniforme e colaborou. O tio de Nora foi doutrinado na inf�ncia e depois se tornou soldado.
Foi um percurso �rduo e doloroso. A ilustradora n�o se esquivou de esmiu��-lo em Heimat. “Como alem� da gera��o p�s-Segunda Guerra, cresci com o sentimento de culpa. Durante a adolesc�ncia, n�o se falava muito disso na escola, mas quando me mudei para o exterior, percebi que nunca havia abordado o tema de maneira mais s�ria”, afirma.
Para Nora, essa abstra��o paralisa a sociedade e a impede de lidar, de forma mais pessoal, com a culpa e a heran�a deixadas pelo nazismo. “Era tudo muito abstrato, e eu precisava fazer essas perguntas para as pessoas. Mesmo que fosse dolorido, era necess�rio”, diz.
Quando come�ou a escrever Heimat, a artista pensou, principalmente, nos leitores norte-americanos. “De certa forma, o livro foi uma resposta para encontros que tive ao longo dos anos, alguns muito negativos, pois era sempre confrontada com estere�tipos negativos, n�o s� da hist�ria da Alemanha, mas da identidade alem� de hoje.”
A ascens�o da extrema-direita tamb�m motivou o livro. A apropria��o por parte desse grupo de um discurso muito similar ao utilizado nos anos 1930 para convencer os alem�es de que os judeus eram amea�a perturbou Nora. Atualmente, o alvo s�o os imigrantes. Mais do que nunca, ela acredita, � hora de encarar o fato de que toda a sociedade alem� corroborou, no passado, para o Holocausto – hoje, essa disposi��o pode estar rondando novamente muitas sociedades europeias.
Investigar como a pr�pria fam�lia lidou com isso � crucial, na vis�o da autora, que lembra Hannah Arendt para definir a gravidade da situa��o: “Ela disse que se todos s�o culpados, ent�o ningu�m �. Hoje, � muito f�cil, na Alemanha, ouvir dizer ‘ah, todo mundo era seguidor, por que mexer nisso?’. Esse � o grupo de pessoas que mais precisa ser investigado, porque h� um vasto universo nessa ideia de seguidor. Ele vai de salvar algu�m at� cometer terr�veis atrocidades. � uma categoria muito cinzenta”. Nesta entrevista, Nora Krug fala sobre a import�ncia de enfrentar e compreender a hist�ria para construir o futuro.

HEIMAT – PONDERA��ES
DE UMA ALEM� SOBRE
SUA TERRA E HIST�RIA
• De Nora Krug
• Tradu��o: Andr� Czarnobai
• Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras
• 288 p�ginas
• R$ 119,90
“Precisamos enfrentar o passado”
Ao investigar sua hist�ria pessoal, voc� tamb�m escreveu uma hist�ria coletiva?
Sim. N�o podemos separar o pessoal do coletivo, o pol�tico do coletivo, o coletivo do indiv�duo, porque todos compartilhamos uma hist�ria. Voc� pode ter um �ngulo pessoal nessa hist�ria, mas, ao mesmo tempo, sempre haver� algo sobre a experi�ncia germ�nica coletiva. Minha esperan�a era de que o livro fosse universal, n�o apenas sobre minha fam�lia, mas sobre uma quest�o social maior; n�o apenas sobre a Alemanha, mas sobre qualquer pa�s que precise enfrentar com responsabilidade o passado.
Como seria essa maneira mais construtiva de lidar com a culpa?
V�rios erros foram cometidos na minha educa��o. Minha gera��o n�o foi encorajada a investigar seu pr�prio ambiente f�sico, o engajamento de nossas fam�lias, de nossas cidades, das pessoas que conhecemos. Isso deveria ter sido encorajado por professores e por institui��es, pois n�o se pode deixar a tarefa para os membros da fam�lia, deve haver uma institui��o por tr�s. Outro aspecto � que nunca falamos sobre nossos sentimentos. Quando falamos sobre hist�ria, apenas aprendemos os fatos. E os fatos, claro, n�o ajudam emocionalmente se n�o falarmos sobre o que eles fizeram conosco. Sei que estudantes visitam campos de concentra��o e museus, mas �, basicamente, para fazer pesquisa. N�o acho que depois de todas essas visitas nossos professores perguntem como nos sentimos. Essa � uma quest�o muito importante. Depois dessas visitas, voc� se sente atordoado e fica sem sa�da emocional para lidar com esses sentimentos. Tamb�m n�o aprendemos sobre a resist�ncia alem�. Sabemos pouco, apenas sobre dois movimentos, mas a estimativa � de que 77 mil pessoas morreram por resistir ao regime. Pode ser inspirador aprender, porque poder�amos aprender, hoje, a lutar pela democracia.
Quais foram as suas escolhas para evitar ser mal compreendida?
N�o gosto de pensar nos alem�es como v�timas sob o regime, porque a maioria deles o apoiou. Alguns, n�o – e esses provavelmente foram v�timas. Mas nunca diria que os alem�es foram v�timas, porque eles quiseram o regime e o apoiaram at� o fim. Com o livro, meu maior medo foi as pessoas pensarem que eu estava relativizando as atrocidades alem�s ou fazendo os alem�es parecerem v�timas. Minha meta era tentar entender como as pessoas lidaram com isso atrav�s das gera��es e o que aconteceu na minha fam�lia. Ao mesmo tempo, sabia que escreveria um memorial. Em um memorial, voc� tem de ser honesto e escrever sobre o que sente. N�o � um livro de hist�ria, escrito por um historiador, e sim o livro de um autor que quer falar da pr�pria vida.
O que foi mais dif�cil nesse processo?
Sabia que teria de lidar com uma perda familiar, a perda da minha fam�lia durante a guerra, e isso foi o mais dif�cil no processo de escrever, saber como colocar o tom certo. Para mim, tratava-se muito de linguagem, de escrever sobre essa perda de maneira pessoal e honesta, mas sem autopiedade nem sentimentalismos. Outra dificuldade foi parear as imagens com o texto. Nos filmes, as imagens v�m com m�sica e voc� pode facilmente acrescentar uma emo��o, pode ficar rapidamente muito sentimental. Ent�o, tive de pensar muito em como equilibrar o texto e as imagens de maneira a n�o criar um sentido de sentimentalismo.
Por que voc� escolheu o termo heimat? O que ele significa para voc�?
Quando comecei a escrever o livro, meu editor alem�o foi imediatamente contr�rio a usar heimat como t�tulo, porque era muito carregado de germanismo. Os nazistas se apropriaram dessa express�o de maneira err�nea, como se fosse um espa�o est�tico destinado apenas a certo tipo de pessoa. � isso que a extrema-direita est� tentando fazer novamente. Durante o per�odo em que escrevi o livro, o cen�rio pol�tico da Alemanha mudou completamente, a extrema-direita reemergiu. O editor mudou de ideia. Disse que ele tinha, mesmo, de se chamar Heimat, pois temos de retomar esse termo da extrema-direita. Eles n�o s�o os �nicos com direito a reivindicar essa palavra, todo mundo tem direito a ela e a interpret�-la da forma que quiser. � um termo muito pessoal. Significa coisas diferentes para cada um, n�o � um termo est�tico, muda ao longo do tempo, muda ao curso da sua pr�pria vida.
Como a extrema-direita se apropriou do termo?
A extrema-direita est� tentando dizer que heimat s� � acess�vel a um tipo de pessoa. Chamei o livro assim querendo chamar a aten��o para uma reflex�o sobre a Alemanha, sobre a nossa responsabilidade de olhar para tr�s. Podemos ter sentimentos fortes em rela��o ao lugar de onde viemos, mas tamb�m podemos olhar para tr�s de maneira cr�tica – essas coisas n�o s�o contradit�rias. Pessoalmente, � muito dif�cil para mim definir heimat. Parte disso se deve ao fato de viver no exterior h� tanto tempo. Sou uma estranha no lugar de onde vim, ent�o me conecto por meio da inf�ncia, das mem�rias de minha inf�ncia, porque este � um lugar ao qual sinto que posso retornar.
� poss�vel ser cr�tico em rela��o ao passado da Alemanha sem deixar de expressar amor ao pa�s?
Na Alemanha, h� uma divis�o. H� as pessoas que dizem ‘chega de culpa, precisamos avan�ar’ – elas s�o minoria, mas existem. E h� as pessoas com as quais me identifico mais, que olham de maneira mais cr�tica para o pa�s e seu passado. Acreditam que precisamos enfrentar esse passado. O problema � que elas t�m muita dificuldade de abra�ar a Alemanha e celebrar sua cultura, o que deixa um sentimento positivo para a extrema-direita. Logo, isso n�o � bom. Os alem�es que acreditam que precisamos continuar a enfrentar o passado t�m de aprender a amar o pa�s e como expressar esse amor. N�o � saud�vel n�o ter sentimento positivo em rela��o a seu pa�s, isso pode rapidamente se tornar uma atitude de defesa, o que � perigoso.
Como os millennials lidam com isso?
N�o posso falar por todos, mas, outro dia, fui falar na escola em que estudei. Disseram, basicamente, que n�o querem se sentir culpados, mas querem se sentir respons�veis. Querem ter a certeza de que n�o vai acontecer novamente. N�o querem se sentir culpados porque n�o foram eles que cometeram as atrocidades. Essa � uma das maneiras mais saud�veis de seguir em frente, pois a culpa com a qual cresci n�o � saud�vel. Precisamos continuar a aprender sobre o Holocausto, mas precisamos encontrar uma forma mais construtiva de lidar com a hist�ria, e n�o uma maneira que nos paralise. Espero que as novas gera��es fa�am isso. Por�m, h� sempre o perigo de quanto mais nos afastarmos da gera��o que passou pelo problema, mais f�cil esquecer o que ocorreu.