Os atores Anthony Hopkins, que interpreta Bento XVI, e Jonathan Pryce, que vive o papa Francisco, foram indicados ao Globo de Ouro. Premia��o ser� no pr�ximo dia 5 (foto: Netflix/Divulga��o)
Um completo exerc�cio de toler�ncia embala o filme Dois papas, produ��o da Netflix dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles, que recebeu quatro indica��es ao Globo de Ouro, incluindo a de melhor filme. “Acho que a Igreja est� t�o polarizada quanto o Brasil ou o resto do mundo. Meu filme n�o prega, mas mostra que o di�logo � uma possibilidade. Eu acredito nisso. A produ��o fala sobre construir pontes, e n�o muros – isso vale para as nossas rela��es pessoais, para a pol�tica e mesmo para a pr�tica espiritual”, afirma o diretor.
Com roteiro do renomado Anthony McCarten (O destino de uma na��o, A teoria de tudo), Dois papas aborda os bastidores de um encontro entre o papa Bento XVI e o ent�o futuro papa Francisco. Na cartilha do devoto cin�filo Fernando Meirelles, n�o h� declarada paix�o por filmes sobre papas. “Assisti e gostei de alguns, mas nenhum me impressionou. Para ser honesto, Vaticano e papas nunca me interessaram muito”, diz.
Em rela��o � tese de que o papa n�o erra, Meirelles n�o titubeia para discordar abertamente. “Claro que n�o. Ele � humano, imperfeito como todos n�s. Por que n�o seria?” N�o se trata de desfeita, muito menos de chacota, at� mesmo pelo fato de Fernando Meirelles ser um admirador declarado do papa argentino. “Minha motiva��o para o filme foi conhecer melhor esse papa, o Francisco, principalmente depois de ele ter publicado sua enc�clica Laudato si, O cuidado com a nossa casa comum”, conta. Naquele documento, datado de 2015, Francisco tratava da degrada��o na ecologia, do consumismo desmedido e de impactos na natureza. Meirelles � um ambientalista atuante.
Dois papas, em certa medida, mexe em vespeiro, trazendo � tona, nos pleitos filos�ficos dos personagens centrais, temas como nazismo, tortura, ditadura e martiriza��es. Na atualidade, cren�as e religi�es, pela vis�o do cineasta, n�o tendem a diferir muito em rela��o a outras eras. “N�o creio que seja muito diferente do que sempre foi. Claro que os formatos mudam, mas a liga��o que muitos sentem com o divino, n�o importa dentro de qual religi�o, parece estar nos nossos genes, pois aparece em todas as culturas e civiliza��es ao longo de toda a curta hist�ria do homem no planeta”, afirma.
Em 2004, Fernando Meirelles entrou para a hist�ria do Oscar ao emplacar quatro indica��es nas categorias principais da premia��o da Academia de Artes e Ci�ncias Cinematogr�ficas de Hollywood para um filme estrangeiro. Cidade de Deus entrou na disputa de melhor diretor, fotografia (C�sar Charlone), roteiro adaptado (Br�ulio Mantovani) e montagem (Daniel Rezende). Dois papas concorre a quatro pr�mios do Globo de Ouro, concedidos pela Associa��o dos Correspondentes Estrangeiros em Hollywood. Com as indica��es ao Oscar previstas para o pr�ximo dia 13, o diretor brasileiro se mant�m comedido nas expectativas.
“O filme est� indicado para algumas categorias do Globo de Ouro, que antecede o pr�mio da Academia. Isso � um ind�cio de que est� no p�reo. Mas a briga ali � sangrenta, ent�o tento ficar na minha e o que vier, se vier, ser� lucro. Curioso que pouca gente sabe quem ganhou o Oscar do ano anterior, mas essas nomea��es ou pr�mios importam muito na ind�stria, pois um filme que aparece naquelas listas pode dobrar seu faturamento ou, �s vezes, multiplicar lucros por 10”, comenta. Em rela��o ao passe de um diretor indicado � estatueta, ele � direto: “Mais propostas aparecem, e o cach� aumenta”.
O diretor Fernando Meirelles participou da pr�-estreia do longa-metragem no AFI Fest, em Los Angeles, no �ltimo dia 24 de novembro (foto: Val�rie Macon/AFP)
"A grande reforma que ele (o papa Francisco) poderia fazer, mas n�o creio que far�, seria mudar o papel das mulheres na Igreja, que ainda se limitam a ser secret�rias e a ir passar o caf�. De uma perspectiva da f� ou do ponto de vista de 'Deus', caso ele exista, n�o faz sentido uma freira n�o poder rezar missa ou fazer um casamento%u201D
Fernando Meirelles, diretor
Ode � imperfei��o
Vota��o, reformas, campanhas e aposentadoria: a exemplo da pol�tica, nenhuma decis�o segue o car�ter pessoal quando se esmi��am os tr�mites do Vaticano no enredo do filme Dois papas. Entre a popularidade (que imanta a figura do futuro papa Francisco) e o rigor de quem, pelo excesso de estudos, desviou-se at� mesmo da vida (condi��o assumida pelo papa Bento XVI), o longa assinado por Fernando Meirelles trata de diverg�ncias, mas conflui, de fato, para uma estrada congestionada pela liturgia do perd�o, encerrado em abra�o de paz. A intersec��o de dois mundos internos corporificados por autoridades papais tem o encanto de dois s�bios atores, impec�veis em cena: Jonathan Pryce (carism�tico) e Anthony Hopkins (que se faz desaparecer a cada cena).
Com roteiro complexo assinado por Anthony McCarten, um dos grandes acertos � o de questionar autoridades e emplacar a humanidade de figuras santificadas por legi�es de cat�licos. Acompanhando uma modernidade, ainda hoje sem emparelhamento entre os cabe�as que definem a ordem religiosa, a narrativa de Dois papas casa com o esp�rito algo galhofeiro de Fernando Meirelles.
Balancear uma realidade de ren�ncia com a alegria carnavalesca da trilha que elenca Beatles, Mercedes Sosa e Abba � sintom�tico. Na ode libert�ria, o uso pontual de Bella ciao e Claire de lune tamb�m enobrecem o filme. Um fil�o de dados autocr�ticos para os dois pont�fices em quest�o, no filme, destaca a luz da camada sadia do projeto.
Indicativos de esc�ndalos, men��es a desvio de dinheiro e a dose de ostenta��o sacramentada pela Igreja deixam clara a disposi��o de Meirelles de n�o ofertar a cara a tapas: pretende, e consegue, expandir as nuances de um (des)encontro de almas algo angustiado (dado o peso da responsabilidade de ser papa). Com contornos sutis, Dois papas ainda acopla elementos de culturas de f� (entre as quais o tango e o futebol). Julgamentos, perd�es e ren�ncias trazem fundo filos�fico ao filme, que tem cenas emblem�ticas, como a da ceia solit�ria de Bento XVI (algo ensurdecido, para ouvir “a voz de Deus”) e a generosidade de Francisco ao reservar holofotes para o colega, no mundo de adora��es das selfies de terceiros.m
Quatro perguntas para...
Fernando Meirelles,
diretor
Como percebe a atua��o do papa?
Ele continua firme em suas pautas pelo clima, pelo meio ambiente, pelo combate � desigualdade e continua falando sobre miseric�rdia, seu tema principal. Mas tenho que confessar que, quando ele come�ou, esperava que, a esta altura, a Igreja j� tivesse se movimentado mais. Mas sei que essa � uma institui��o muito grande, muito antiga e com ra�zes muito fundas, dif�cil de mexer. A grande reforma que ele poderia fazer, mas n�o creio que far�, seria mudar o papel das mulheres na Igreja, que ainda se limitam a ser secret�rias e a ir passar o caf�. De uma perspectiva da f� ou do ponto de vista de “Deus”, caso ele exista, n�o faz sentido uma freira n�o poder rezar missa ou fazer um casamento. Por que elas n�o podem ser bispos ou cardeais? � medieval.
Consegue ver o papa Francisco como conciliador?
Agora que o conheci um pouco melhor, ele n�o me parece t�o conciliador. � teimoso e voluntarioso. Alguns dizem que � autorit�rio tamb�m. Mas aprendi tamb�m que com a C�ria tem que ser assim mesmo. � como diz Bento XVI no filme: “Voc� coloca a sua m�o ali, e eles a transformam em carne mo�da”. Ser papa � a pior profiss�o do mundo.
Voc� � religioso? Esse aspecto teve alguma influ�ncia no filme?
Sou agn�stico, mas este filme me fez pensar muito nesses temas da nossa origem, da nossa conex�o com o resto do universo e do sentido da nossa exist�ncia. Nossa vida � um milagre, n�o tem como negar isso, e come�o a achar que ela n�o pode ser s� um acaso sem nenhum sentido. Tenho no��o da minha insignific�ncia, sinto que sou uma poeirinha absolutamente desprez�vel e desimportante, mas come�o a sentir tamb�m que esse gr�ozinho que sou faz parte de uma tempestade de areia c�smica, uma ordem que est� em tudo.
O futebol est� no filme de modo vital... Religi�o e futebol s�o �pios do povo?
O papa Francisco era um fan�tico torcedor do San Lorenzo na Argentina, por isso o futebol entrou. Mas, sim. Para mim, religi�o, futebol e tamb�m ideologia pol�tica, de direita ou de esquerda, s�o manifesta��es do mesmo fen�meno psicol�gico. Muitos indiv�duos se identificam emocionalmente com esses temas e desenvolvem uma esp�cie de filtro que os torna imunes � raz�o. Acho que isso est� ligado tamb�m �quela ideia de pensamento de cardume, da necessidade interna que temos de pertencer a um grupo e agir e pensar igual, n�o importa se � a Igreja, se � o Flamengo ou o PT. H� um estudo interessante que mostra que pessoas que participam de uma depreda��o durante uma manifesta��o jamais fariam isso e reprovam a atitude como indiv�duos. � o pensamento de cardume que as transforma. Alguns pastores e l�deres populistas sabem disso e exploram esse estado imantado de seus seguidores para control�-los. Pessoalmente, tenho muito medo de quem tem f� ou convic��es ideol�gicas cegas. Tamb�m j� fugi correndo de torcedores corintianos num jogo no Morumbi no qual o Santos venceu. Prezo as minhas d�vidas.