'Pux�o de orelhas' do diretor de 'Parasita' vale para o brasileiro
Brasil d� pouco espa�o � produ��o asi�tica, que n�o � falada em ingl�s. O sul-coreano Bong Joon-ho, ao receber o Oscar, desafiou o mercado mundial a 'quebrar a barreira' das legendas
A tradutora sul-coreana Sharon Choi 'recebe' o Oscar das m�os do diretor Bong Joon-ho, que discursou em sua l�ngua na festa do cinema, em Los Angeles (foto: Matt Petit/AFP)
O recado est� dado. O apelo de Bong Joon-ho, diretor de Parasita, ao recomendar que o mundo supere “a barreira das legendas” e conhe�a “muitos filmes incr�veis” da Coreia do Sul e de outros pa�ses, vale – com for�a – para o Brasil. “Nosso padr�o internacional de escuta � o ingl�s, estranhamos at� o espanhol. Tamb�m precisamos quebrar essa barreira”, afirma a pesquisadora Daniela Mazur. Graduada em estudos de m�dia e doutoranda em comunica��o pela Universidade Federal Fluminense (UFF), h� 10 anos ela se dedica � cultura pop do Leste Asi�tico, sobretudo � m�sica e � produ��o televisiva sul-coreana.
A hist�rica vit�ria de Parasita no Oscar pode dar o “start” de uma virada, chamando a aten��o do brasileiro para a produ��o cultural fora do eixo Estados Unidos-Europa, acredita Daniela. Ali�s, foi mais do que simb�lico Bong Joon-ho discursar em sua l�ngua materna, ao lado da tradutora sul-coreana Sharon Choi, quando recebeu pr�mios nos EUA (Oscar e Globo de Ouro) e na Fran�a (Cannes, em 2019). Ele fala ingl�s, mas seu gesto deixa claro que a globaliza��o � multifacetada.
“O mundo inteiro – inclusive n�s, brasileiros – est� vivenciando mudan�as no �mbito internacional relativas ao consumo de cultura. Produtos perif�ricos que n�o circulavam no Brasil v�o chegando por aqui com legendas ou dublados”, diz Daniela. A pesquisadora d� o exemplo de novelas turcas exibidas recentemente em hor�rio nobre pela Band.
“H� tr�s anos, n�o se tocava k-pop nas r�dios do Rio de Janeiro. Hoje, essas bandas fazem parte da grade di�ria a pedido dos ouvintes, conforme programadores das emissoras t�m nos revelado”, afirma.
''Nosso padr�o internacional de escuta � o ingl�s, estranhamos at� o espanhol. Tamb�m precisamos quebrar essa barreira''
Daniela Mazur, pesquisadora do Midi�sia
Outro indicador � o cat�logo da Netflix. A empresa n�o divulga seus n�meros, mas � evidente o aumento da oferta de produ��es chinesas, taiwanesas, tailandesas e japonesas. “Seguramente, j� passam de 150 as s�ries sul-coreanas, os k-dramas, em cartaz na plataforma. Voc� encontra tamb�m t�tulos indianos, iranianos, africanos”, diz Daniela Mazur, que faz parte do centro de estudos Midi�sia, ligado � UFF.
O fen�meno Parasita pode abrir novos espa�os no Brasil para produ��es da �sia, ainda confinadas a salas “cult”. Lembrando que filmes da Coreia do Sul, China, Ir� e Jap�o se destacam h� d�cadas em festivais como Cannes e Berlim, Daniela afirma que Bong Joon-ho agora est� no radar do circuito comercial do pa�s.
“O Oscar funciona como um aval ocidental – infelizmente, necess�rio neste mundo angl�fono, centrado em hist�rias europeias e americanas. Sem d�vida, o fen�meno Parasita tem impacto internacional, expandindo o potencial de mercado para as produ��es ditas perif�ricas”, observa.
� fato a pot�ncia da hallyu – onda cultural sul-coreana deflagrada pelo governo a partir dos anos 1990, que gerou US$ 9,5 bilh�es em exporta��es s� em 2018, ancorada sobretudo em bandas do k-pop, como a BTS. “H� alguns anos, o mundo conhecia a Coreia do Sul como um pa�s em estado de guerra, ditadura asi�tica. Hoje, ela � reconhecida como polo cultural”, diz Daniela Mazur.
�cone dos k-dramas, Sonata de inverno ajudou a aparar arestas hist�ricas entre a Coreia do Sul e o Jap�o (foto: KBS/divulga��o)
PRECONCEITO
Por�m, h� barreiras consider�veis a serem vencidas. A pesquisadora do Midi�sia aponta o preconceito como uma delas. “Para n�s, o Oriente sempre foi sin�nimo de exotismo. Coreia do Sul, Jap�o, China s�o distantes cultural e geograficamente do Brasil. Uma das caracter�sticas do imperialismo � exotizar o que n�o � ocidental”, observa Daniela, destacando o racismo como parte dessa constru��o hist�rica.
O Brasil n�o foge � regra, apesar de abrigar importantes col�nias asi�ticas – est� aqui a maior comunidade nip�nica fora do Jap�o. De acordo com o Censo 2010, j� defasado, 2 milh�es de brasileiros se autodeclararam de ra�a amarela, popula��o que cresceu 177% em uma d�cada. Em 2016, o ator Luis Melo protagonizou a novela Sol nascente (Globo) no papel de Kazuo Tanaka. �culos fundo de garrafa disfar�avam os olhos “ocidentais” do curitibano. Em 2014, em Gera��o Brasil (Globo), o ga�cho Rodrigo Pandolfo usava fita adesiva para que seu personagem, o sul-coreano Shin-Shoo, tivesse olhos puxadinhos.
“Adapta��es” do g�nero, ali�s, n�o s�o privil�gio brasuca. O pesquisador da UFF Lu�s S�lha mostrou que num dos epis�dios do desenho japon�s Pok�mon exibido nos EUA, o bolinho de arroz onigiri foi apagado e substitu�do por um donut.
A escassez de rostos asi�ticos na TV e no cinema brasileiros refor�a o “estranhamento” do p�blico em rela��o � produ��o audiovisual do Oriente. “Essa representa��o midi�tica � importante”, defende Daniela Mazur. “O que n�o � visto fica longe do alcance da compreens�o.” A barreira da l�ngua – que o cineasta de Parasita quer superar – � outro problema, diz ela, contando que tem enfrentado desafios para convencer as pr�prias amigas a seguir k-dramas. Muitas n�o passam do primeiro epis�dio.
“H� rejei��o em ouvir o que n�o � falado em ingl�s. As pessoas alegam que as l�nguas orientais soam estranhas, assim como rostos coreanos, japoneses, chineses. Nosso padr�o de escuta � angl�fono, o brasileiro se acostumou a ouvir ingl�s, seja no blockbuster ou no filme cult”, diz ela. Por�m, dublar em portugu�s falas em coreano, chin�s ou japon�s � um processo complicado, devido a profundas diferen�as entre essas l�nguas, reconhece Daniela.
“No Brasil, praticamente adotamos como 'nossas' as s�ries e os filmes falados em ingl�s. Cinema estrangeiro nunca � o americano, mas o iraniano, indiano, japon�s, coreano e at� o argentino. Spielberg, Adam Sandler nos soam familiares. Isso � uma constru��o cultural”, refor�a a pesquisadora.
Ali�s, ela pr�pria, quando iniciou suas pesquisas sobre o pop coreano, cansou de ouvir “voc� t� doida?” nas salas de aula. “Mas os professores diziam: siga em frente. Foi o que fiz.” A partir de 2016, quando o fen�meno k-pop mobilizou jovens brasileiros e pesquisas sobre a hallyu ganharam destaque, o objeto de estudo de Daniela passou a ser melhor compreendido, inclusive na �rea acad�mica.
“Foi uma constru��o bonita, as pessoas come�aram a perceber a for�a do Leste Asi�tico, a necessidade de a gente se abrir a outros olhares”, conta. Parasita vem ao encontro desse novo tempo. “Falado em coreano, o filme do Bong Joon-ho dialoga com m�ltiplos p�blicos. Faz isso de forma muito mais eficiente do que Era uma vez em... Hollywood”, compara.
A supera��o do “estranhamento” em rela��o a produtos asi�ticos ainda levar� tempo. “H� muito ch�o a percorrer para se criar um ambiente mais saud�vel para o conv�vio das diferen�as. Mas a nossa sociedade hiperconectada favorece a media��o, espa�os v�m sendo abertos e isso pode ser observado claramente em nichos da internet”, diz Daniela.
''No Brasil, praticamente adotamos como 'nossas' as s�ries e os filmes falados
em ingl�s. Cinema estrangeiro nunca � o americano, mas o iraniano, japon�s,
coreano e at� o argentino''
Daniela Mazur, pesquisadora do Midi�sia
BTS
Sintoma disso � a abertura do p�blico jovem a produ��es asi�ticas. F�s de bandas k-pop como BTS, Exo e Blackpint, por exemplo, aderiram ao k-drama, com suas tramas leves e rom�nticas. Daniela Mazur observa que as plataformas Netflix e Viki Rakuten exibem dezenas de produ��es legendadas em portugu�s. Cita as s�ries Goblin (megassucesso na �sia, sobre um ser m�gico que busca noiva humana), Signal (trama policial sobre o misterioso assassinato de uma crian�a) e a trilogia Responde 1988, Responde 1994 e Responde 1997 (o cotidiano de gente comum em Seul, uma esp�cie de A grande fam�lia).
Cl�ssico dos cl�ssicos, o k-drama Sonata de inverno (2002) fez imenso sucesso no Jap�o, advers�rio hist�rico da Coreia do Sul, contribuindo para estreitar as rela��es diplom�ticas entre os dois pa�ses. Cen�rios da s�rie se tornaram cart�es-postais coreanos, atraindo hordas de turistas. Exatamente o que ocorre agora com Parasita. O t�nel, a lojinha, a pizzaria do filme viraram loca��es para selfies de f�s de Bong Joon-ho, que, ali�s, foi recebido como her�i ao desembarcar no Aeroporto Internacional de Incheon, no fim de semana. Nem o perigo do coronav�rus espantou os admiradores do diretor. Estava todo mundo de m�scara – menos ele.
Lu�s Melo, o 'japon�s' da novela Sol nascente (foto: Jo�o Miguel J�nior/divulga��o)