
E mais a Vi�va Porcina, as Helenas dos folhetins de Manoel Carlos e a lutadora cidad� Raquel Accioli, antagonista da vil� Odete Roitman, em Vale tudo (1988), sucesso retumbante que p�s o pa�s, e n�o s� os noveleiros, para refletir sobre corrup��o e impunidade, embalada pela m�sica-tema de Cazuza (1958-1990), interpretada por Gal Costa: Brasil, mostra a tua cara/quero ver quem paga/pra gente ficar assim. Em mais de 50 anos de carreira, s�o muitas as personagens interpretadas pela atriz Regina Duarte, rec�m-empossada secret�ria Especial de Cultura do governo de Jair Bolsonaro. Se deu cara e voz a tantas figuras femininas, poderia agora se inspirar em alguma delas para desempenhar seu papel na gest�o p�blica? Com a palavra, atores, diretores e professores de teatro.
A atriz e diretora Yara de Novaes sugere, reconhecendo a pouca probabilidade, que Regina Duarte poderia “convocar” algumas das personagens mais fortes de sua galeira para incorpor�-las. Como se baixasse um santo para levar adiante a nova fun��o. “Ela interpretou mulheres que glorificaram a justi�a, a igualdade, uma sociedade equ�nime e, principalmente a liberdade”. Citando inicialmente Malu mulher, Yara destaca a for�a da personagem de O santo inqu�rito (1996), que lutava contra a opress�o no Nordeste brasileiro do s�culo 16. No palco, a jovem Branca Dias, v�tima da Inquisi��o por suas origens judaicas. “N�o sei se inspira��o ser� suficiente num momento que se associa (o governo) � tirania, pois ela (a tirania) j� exige a submiss�o”, avalia.
A s�rie Malu mulher ficou gravada na mem�ria de gera��es de brasileiros. � o caso do diretor de teatro e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Wilson Oliveira, que dirigiu, em 1984, A lira dos 20 anos, e, no ano passado, A morte e a donzela. “A personagem ia na contram�o de uma linha conservadora e, mesmo sendo no per�odo da ditadura militar, apontava para mudan�as no pa�s”, pontua Wilson, se dizendo surpreso por Regina atuar “nesse governo”. Para ele, “o presidente agiu com esperteza ao convidar a atriz para o cargo e me surpreendi mais por ela ter aceitado”. Com todos esses sinais contradit�rios, Oliveira espera que ela possa ao menos manter o di�logo e fazer a media��o entre a cultura, o Estado e a concretiza��o de projetos.
Sucata
Sem perder o bom humor em tempo de incertezas, a atriz e palha�a Mariana Arruda, do grupo de teatro de rua Maria Cutia, n�o tem d�vida: a melhor personagem – e cita o nome da novela de S�lvio de Abreu, de 1990 – seria a Rainha da sucata, aquela em que Sidney Magal rebolava, cantava e convidava na abertura: Me chama que eu vou. “Penso que, diante da situa��o do pa�s – com um presidente que n�o valoriza as artes nem tem ideia do que seja isso, que acabou com o Minist�rio da Cultura e est� sucateando todos os setores, como a Funarte (Funda��o Nacional de Artes) –, n�o vejo outro papel a n�o ser 'rainha da sucata'”, cr� Mariana, cujo �ltimo espet�culo com o Maria Cutia, O auto da compadecida, de Ariano Suassuna, tem dire��o de Gabriel Vilela.
Na novela Rainha da sucata, a ex-namoradinha do Brasil era Maria do Carmo, uma mulher meio barraqueira que ficava rica e protagonizava embates com a fina e “quatrocentona” Laurinha Figueiroa, interpretada por Gl�ria Menezes. O jarg�o “coisas de Laurinha” virou sin�nimo de falcatrua. “Hoje, os artistas est�o demonizados a partir dos atos do governo”, critica Mariana.
Sobram sinais contradit�rios
Tamb�m lamentando os ataques � classe art�stica, a atriz e professora de musicaliza��o, especialmente na �rea infantil, Ant�nia Claret, vai na toada de Malu Mulher, em quem a atual secret�ria Especial de Cultura deveria se inspirar para o novo posto. “Era forte, lutava pelos direitos das mulheres, se insurgia contra o machismo, era feminista”, recorda Ant�nia que, em abril, retorna ao palco com a pe�a A jagun�a, no Teatro Ceschiatti, em BH. “Fico pensando que, neste governo de um presidente machista, ela ter� de decidir entre dois caminhos: lutar contra isso ou ent�o ser demitida.”
Para quem chegou ao mundo 'agora', ou estava na tenra idade quando a s�rie foi ao ar, Malu mulher fez furor na �poca. Regina Duarte interpretava a rec�m-divorciada m�e de uma garota que juntava os cacos da vida e sofria preconceitos. A m�sica-tema Come�ar de novo (de Ivan Lins, na voz de Simone) sintetizava bem isso. Levada ao ar nas noites de segunda-feira � noite, tratava assuntos ent�o considerados incomuns na dramaturgia televisiva daquele per�odo, como homossexualidade e racismo.
Na galeria de personagens, Ant�nia Claret se recorda da espalhafatosa Vi�va Porcina. No sucesso de Roque santeiro, da TV Globo, levada ao ar entre 1985 e 1986, a personagem “tinha pulso, de atitude”. Enfim, uma figura “porreta” do universo feminino e dos folhetins brasileiros. Antes, a temida Censura Federal do governo militar “tesourou” (cortou, para usar palavra da �poca) a exibi��o da primeira vers�o de Roque Santeiro, em 1975. E outra telenovela, estrelada por Ant�nio Fagundes e Regina Duarte, foi censurada. Despedida de casado iria ao ar em 3 de janeiro de 1977. Escrita por Walter George Durst e dirigida por Walter Avancini, entraria �s 22h, mostrando o desgaste natural de uma uni�o de 10 anos e problemas familiares.
Espelho
Mas h� quem enxergue atrav�s do espelho e, em vez de eleger personagens, indique uma refer�ncia. Com mais de 40 anos de estrada, a atriz, escritora, cantora e professora de teatro Elisa Santana prefere n�o escolher um papel na galeria de Regina Duarte, que estreou nos palcos aos 14 anos. "S�o pap�is marcantes, mulheres de coragem, de opini�o e defensoras da liberdade, que destoam do atual governo", destaca Elisa. Portanto, ela acha que a nova secret�ria Especial de Cultura poderia se inspirar n�o na fic��o, mas na vida real, mais exatamente na colega de of�cio Fernanda Montenegro, que, convidada por governos anteriores, nunca aceitou o cargo de ministra da Cultura.
Ela em cena - O que disseram personagens de Regina Duarte
"Eu tenho minha consci�ncia limpa, e � com ela que eu vou ter for�a, � com ela que eu vou subir"
. Raquel Accioli, rasgando o vestido de noiva da filha mau-car�ter, em Vale tudo, de Gilberto Braga
"Bate, Bate! Mata, Mata! Pois ser� a �ltima vez que voc� encosta a m�o em mim"
. Malu, em Malu mulher, na cena da violenta separa��o do marido
"Em sua opini�o: Eu continuo pura como antes? (...) Tudo depende de saber se estamos do lado do Sol ou do lado da Terra"
. Branca Dias, na pe�a O santo inqu�rito, ambientada no Nordeste do s�culo 16

"Eita! Que hoje parece que � meu dia de urtiga braba!"
. Vi�va Porcina, em Roque santeiro, nos anos 1980.

"N�o sou mulher de ficar sendo rejeitada, tratada como um traste, se conformar"
. Maria do Carmo, em 1990, na pele da Rainha da Sucata