postado em 29/03/2020 04:00 / atualizado em 28/03/2020 22:17
Moradores de Roma participam da a��o ''Uma can��o para a It�lia'', realizada no �ltimo dia 15. O pa�s � o mais afetado na Europa pela epidemia do novo coronav�rus (foto: Fotos: Andreas SOLARO/AFP
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Na era do coronav�rus, a janela e a varanda s�o a nova rua. Tal e qual o efeito domin� do v�rus, as vozes que v�m de edif�cios e casas ganham a vizinhan�a e se amplificam nas redes sociais. Se os chineses gritavam mensagens de apoio de suas janelas durante a quarentena em seu pa�s, foram os italianos que levaram a m�sica para a esfera do conforto, da solidariedade e do escapismo frente � pandemia.
Varreu mundo o v�deo do tenor Maurizio Marchini da sacada de sua casa, em Floren�a, interpretando a c�lebre �ria Nessun Dorma, de Turandot, �ltima �pera de Giacomo Puccini (1858-1924). O Brasil da �ltima semana assistiu (e participou), de casa, de tudo. Houve panela�os contra os pronunciamentos do presidente Jair Bolsonaro, palmas para os profissionais da sa�de, e m�sica, muita m�sica, de diferentes maneiras.
Vinte anos depois de lan�ada, Dias melhores, can��o do Jota Quest, com letra e m�sica de Rog�rio Flausino, foi capaz de emocionar seu autor de uma forma surpreendente. Na noite do dia 21, o primeiro s�bado do isolamento social recomendado pelo prefeito Alexandre Kalil, em BH, e por autoridades de sa�de e governos em diversas outras cidades do pa�s como medida para conter a dissemina��o do novo coronav�rus, Flausino recebeu um v�deo que mostrava, de diversos pr�dios em Santos, S�o Paulo, as pessoas acompanhando o refr�o “Vivemos esperando/Dias melhores pra sempre”.
“Voc� n�o imagina um neg�cio desses, pois nunca tinha acontecido nada parecido. Era muita gente”, conta Flausino, que logo viu o v�deo ser replicado de “forma exponencial”. A baiana Margareth Menezes tamb�m vem acompanhando a agita��o em Salvador. Volta e meia aparece algu�m na janela gritando o refr�o de Fara� divindade do Egito (Luciano Gomes dos Santos), o primeiro samba-reggae gravado da hist�ria. “Eu falei fara�/����� fara�” virou quase um grito de guerra durante a quarentena.
“A musicalidade de Fara� � muito peculiar. J� vi muitos v�deos e at� no condom�nio onde moro. Achei engra�ado demais, pois � uma maneira que as pessoas t�m para ‘colorir’ esse momento de reclus�o e apreens�o”, afirma Margareth, que foi a primeira a gravar a can��o, ao lado de Djalma Oliveira, em 1987.
Passados 33 anos de seu lan�amento, Fara� j� teve in�meros int�rpretes, como Olodum, Banda Mel, Daniela Mercury, Ivete Sangalo. A pr�pria Margareth j� a regravou em v�rias ocasi�es. “� inexplic�vel, ainda mais quanto se pensa que essa m�sica tem tantos anos. Canto na maioria dos shows, e ela traz sempre o mesmo efeito.” Fara�, gravada quando ela tinha 23 anos, foi tamb�m sua primeira can��o a chegar �s r�dios.
''Ela (Dias melhores) � muito pedida, e a gente quase sempre libera gratuitamente para campanhas sociais ou ligadas � ecologia, educa��o e sa�de. A molecada tamb�m canta muito no fim de ano na escola, direto pinta v�deo de formatura com ela. Mas gente na janela do pr�dio foi foda, realmente me pegou''
Rog�rio Flausino, cantor e compositor
FESTIVAIS
Margareth e Flausino, por sinal, se somam �s dezenas de cantores e bandas que, iniciado o per�odo de isolamento social, t�m levado m�sica para as pessoas por meio das redes sociais. Das artes, a m�sica foi a primeira a se unir e reagir no per�odo de quarentena. Ao longo da �ltima semana, assistimos a festivais on-line serem criados do dia para a noite, com apresenta��es intimistas da casa de cada m�sico.
A m�sica, especialmente a can��o popular, vem marcando per�odos dif�ceis da hist�ria. “O que me chama a aten��o � que h� can��es que acabam sendo definidas pelo processo hist�rico da qual participaram, a ponto de o lado est�tico ficar em segundo plano”, comenta o jornalista Rodrigo Merheb, autor de O som da revolu��o: Uma hist�ria cultural do rock 1965-1969 (2012).
Ele cita como exemplos Blowin’ in the wind (Bob Dylan) durante a Marcha dos Direitos Civis nos EUA, em 1963; Apesar de voc� (Chico Buarque) e Pra n�o dizer que n�o falei das flores (Caminhando) (Geraldo Vandr�), no per�odo mais duro da ditadura militar, ap�s o AI-5, de 1968; Alegria, alegria (Caetano Veloso), no impeachment de Fernando Collor, em 1992.
“Desde a �poca da Revolu��o Francesa (1789-1799), com A marselhesa, a m�sica tem esse aspecto inspiracional”, diz Merheb. Para o jornalista, can��es que ganham as ruas (agora, as janelas) s�o “vibrantes, com refr�es fortes, que t�m uma certa vibra��o para ressoar”.
Reconfiguradas neste per�odo de recolhimento, as can��es ganham novas nuances. Dias melhores, Flausino conta, nasceu da maneira mais prosaica poss�vel. Lan�ada no �lbum Oxig�nio (2000), foi composta por ele muito antes.
“Est�vamos numa van, indo para um show. No meio do caminho, ficamos sabendo que a apresenta��o tinha sido cancelada. Eu me lembro da van dando a volta na estrada e voltando para BH. Comecei a escrever o poema na aba de minha agenda. Fiquei brincando com os versos, pois estava chateado. Aquilo ficou guardado, at� que, por volta de 1998, virou a ideia para uma m�sica.”
Lan�ada em 2000, Dias melhores s� foi vingar mais tarde. A gravadora da banda, Sony Music, n�o apostou na can��o. Flausino conta que, quando entrou o ano de 2001 o pr�prio grupo, ainda acreditando no poder da can��o, resolveu bancar a empreitada.
“Fomos para Fortaleza, chamamos o Pietro Sargentelli (que dirigiu v�rios clipes da banda), alugamos um helic�ptero e fomos para o primeiro centro de capta��o e�lica do Brasil, onde filmamos o videoclipe.” Dois meses mais tarde, ocorreu o 11 de Setembro e a can��o, a� j� bem executada nas r�dios, ganhou outra conota��o.
''Um aplauso para a It�lia'' foi a a��o convocada por redes sociais no �ltimo dia 14, na onda de solidariedade aos trabalhadores da sa�de
''A musicalidade de Fara� � muito peculiar. J� vi muitos v�deos e at� no condom�nio onde moro. Achei engra�ado demais, pois � uma maneira que as pessoas t�m para %u2018colorir%u2019 esse momento de reclus�o e apreens�o'
Margareth Menezes, cantora, primeira a gravar Fara�
MOLECADA
“Com o tempo, ela ganhou diferentes contornos. Ela � muito pedida, e a gente quase sempre libera gratuitamente para campanhas sociais ou ligadas � ecologia, educa��o e sa�de. A molecada tamb�m canta muito no fim de ano na escola, direto pinta v�deo de formatura com ela. Mas gente na janela do pr�dio foi foda, realmente me pegou”, comenta Flausino.
Pego de surpresa foi tamb�m o policial militar aposentado Luciano Gomes dos Santos quando come�ou a receber, da reclus�o de sua casa, os v�deos com Fara� das janelas. “A gente fica feliz, gratificado, de ver a for�a que ela tem em situa��es dif�ceis”, comenta ele, que comp�s Fara� em 1986.
“O tema do carnaval do Olodum em 1987 seria “Egito dos fara�s”. Eles distribu�am, e ainda fazem isso at� hoje, uma apostila para que os compositores pesquisassem sobre o tema. Eu me aprofundei legal, procurei livros fora, pois n�o sabia nada sobre o Egito, como ainda n�o sei at� hoje. Mas como eu participava de muitos festivais e blocos, j� tinha sido campe�o do festival do Olodum, e fui convidado a compor”, conta Luciano.
Ele se debru�ou durante uma semana para escrever Fara�. “E ela acabou se transformando no hino do samba-reggae. Tem gente que acha que � ax�, mas ax� � Luiz Caldas, Chicletes, Bell Marques, Durval Lelys. Mas n�o Fara�, que � uma m�sica representativa dos blocos afro”, explica o compositor. E, agora, tamb�m representa um alento para quem est� impedido de ir para as ruas.