
Um ano atr�s, Odair Jos�, de 71 anos, lan�ava seu 37º �lbum, Hibernar na casa das mo�as ouvindo r�dio (Monstro Discos). A can��o que abre o trabalho, Hibernar, tem in�cio com os seguintes versos: “Vou me hibernar por um tempo/me avise quando a cena mudar/O mundo est� de ponta cabe�a/espera ele aprumar”.
“Parece uma profecia, �s vezes sinto at� um arrepio. N�o estou querendo ser o cara da profecia, mas j� via tempos muito dif�ceis pela frente. Que loucura � essa que estamos vivendo? Lamento que at� nisto eu acertei”, afirma Odair de sua casa, em S�o Paulo.
Na opini�o dele, a pandemia do novo coronav�rus s� veio se somar a outras: “A pandemia dos costumes, da pol�tica. Erramos muito, e, para completar, veio isso a�. N�o vou dizer que � uma praga, n�o sou bobo a ponto de dizer uma besteira dessas, mas o cora��o da pandemia j� existia”, afirma.
Ainda que os versos de Hibernar caiam como luva para os dias atuais, a inten��o da m�sica era outra. No �lbum de forte acento roqueiro, o cantor e compositor goiano criou um universo de personagens que se encontram em uma “casa de toler�ncia”, onde tudo � permitido, desde que devidamente combinado. As can��es, em tom de cr�nica urbana direta e simples, versam, em boa parte, sobre os exclu�dos. O disco � um convite � desobedi�ncia.
“A hiberna��o na casa das mo�as era, at� certo ponto, muito agrad�vel. Agora, estamos, por bom senso e coer�ncia, hibernados em casa. As pessoas voltaram a estar em fam�lia, e isso vai ser uma overdose de gente junto. Acho que, quando passar este per�odo, as pessoas dever�o se afastar, pois estar juntos �s vezes � muito sufocante”, comenta.
Como todo mundo, Odair teve projetos suspensos. O mais imediato deles seria uma turn� para celebrar os 50 anos de seu �lbum de estreia – seria um show grande, com 30 can��es de todas as fases.
No in�cio de 1970, foi lan�ado o compacto (single) de Minhas coisas (Rossini Pinto), can��o que at� hoje integra o repert�rio do artista. No meio daquele mesmo ano, saiu o LP Odair Jos�, que reunia 11 outras faixas, al�m dessa. “Foi um bom trabalho, apesar de um ser jovem demais, ter 21 anos. Estava naquela fase do aprendiz”, comenta.
Enfim, estava tudo programado para que o show comemorativo fosse para a rua neste m�s de abril. “V�rias coisas agendadas foram suspensas. N�o sou muito ligado nesse neg�cio de live, tenho participado quando me convidam, porque � uma forma de chegar �s pessoas. Mas est� tudo suspenso.” Tudo inclui tamb�m o trabalho em sua produtora. Pelo menos duas dezenas de profissionais est�o parados.
“� complicado. Neste ramo de trabalho, nem sabemos quando poderemos voltar. Para mim, s� quando tiver um antiviral, uma vacina, pois fica dif�cil reunir pessoas. O bom senso diz que n�o”, ele afirma.
Ficar em casa n�o � o grande problema para Odair, mas sim ficar longe do palco. “Fa�o isso desde crian�a. At� consigo sobreviver, pois tenho certa estrutura. Mas talvez eu esteja dentro do 1% dos artistas brasileiros que t�m estrutura para sobreviver um tempo parado. Acho que em 2020 vamos ficar assim mesmo, com a esperan�a de que tudo passe logo.”
E este “tudo parado” n�o se refere s� � pandemia de coronav�rus. “Antes de acontecer a �ltima elei��o, eu j� tinha certeza de que o Brasil precisava de 10 anos (para sair da crise), j� que ele foi travado. Agora, acho que precisa de 20, nem sei se vou ver.”
Na opini�o dele, as pessoas erraram na escolha na base da “pirra�a”. “N�o queremos isso, ent�o vamos colocar aquilo. S� que ningu�m esperava que a escolha fosse t�o errada.”
“Se algu�m me disser: ‘Odair, o avi�o est� parado, leva para Belo Horizonte.’ Eu vou dizer: ‘N�o sei pilotar, vamos arrumar um piloto’”, ele metaforiza. “O maior incompetente n�o � o que diz n�o saber, mas o que se mete e n�o sabe fazer. O governo que temos hoje no Brasil ser� reconhecido como um erro hist�rico. Agora, tamb�m n�o acho que tem que sair a toque de caixa. Tem que esperar passar e torcer para que o pior n�o seja ainda maior.”
''O maior incompetente n�o � o que diz n�o saber, mas o que se mete e n�o sabe fazer. O governo que temos hoje no Brasil ser� reconhecido como um erro hist�rico. Agora, tamb�m n�o acho que tem que sair a toque de caixa. Tem que esperar passar e torcer para que o pior n�o seja ainda maior''
Odair Jos�,�cantor e compositor
ACADEMIA
Enquanto espera, Odair, que pouco sai de casa, est� sempre em movimento. O frequentador ass�duo de academia est� se virando como pode. “Moro num lugar que tem espa�os, ent�o dou minhas caminhadas, pois n�o posso parar. Agora, o resto � no improviso e olha que nunca gostei de fazer nada improvisado.”M�sica ele tamb�m tem feito, � uma necessidade. “N�o sei quando vou parar. Antigamente, a gente usava uma gravadorzinho chamado ‘espi�o’. Hoje, com o celular, �s vezes estou no meio de uma caminhada e vem ideia de uma melodia. A� deixo registrado, depois coloco a letra.”
Cada caso � um caso. Uma vontade que ele tinha era de falar de seres humanos. Acabou saindo em uma parceria com Arnaldo Antunes – tamb�m prevista para virar show em 2020, vai ter que esperar at� sabe-se l� quando.
“J� o caso da P�lula (Uma vida s�, um de seus maiores sucessos, do �lbum de 1973) nasceu de uma coisa pensada, pois eu queria fazer uma m�sica sobre isso”, comenta ele. Da mesma fase, e tamb�m um dos cl�ssicos de sua carreira, Vou tirar voc� desse lugar, com tema social, foi composta da mesma maneira.
Para Odair Jos�, o per�odo que vai at� 1977 � o grande momento da primeira fase de sua carreira. O auge produtivo culmina com a �pera-rock O filho de Jos� e Maria. Originalmente, o �lbum teria 18 can��es, mas, por a��o da censura, s� 10 foram liberadas. Nas m�sicas, ele narra a hist�ria de um Jesus que descobre a sexualidade e se envolve com drogas.
Um dos artistas mais populares da �poca, Odair se tornou tamb�m um dos mais censurados (s� perdeu para Chico Buarque). Mesmo cortado quase pela metade, o trabalho foi condenado, n�o tocou em lugar nenhum e o cantor foi amea�ado de excomunh�o pela Igreja Cat�lica.
Naquele per�odo, ele se recorda, seus �lbuns vendiam 1 milh�o de c�pias. O filho de Jos� e Maria mal alcan�ou as 60 mil, “tido na �poca como um grande erro”. Recentemente, ele ganhou nova edi��o, em LP, pela cole��o Cl�ssicos em vinil, da Polysom. � uma nova vida para um disco raro e muito conceituado.
Gravado com o trio de jazz Azymuth, O filho de Jos� e Maria foi recuperado em uma s�rie de shows que Odair fez h� dois anos, com o pr�prio grupo com o qual gravou. Mesmo com o lan�amento em vinil 40 anos mais tarde, ele acredita que o trabalho pode ir al�m.
“Acho que o disco deveria ter tido uma aten��o maior por parte da Sony (gravadora que det�m os direitos deste trabalho). Eles ainda n�o perceberam o produto que t�m nas m�os. � um disco importante, atual para os dias de hoje.”
Que o diga uma das faixas, O sonho terminou. “Todos n�s j� nascemos com as asas partidas/Todos n�s estamos presos na gaiola da vida.” Mais uma vez, Odair acertou na mosca.