
Dono de uma carreira premiada no cinema e de um discurso sempre provocativo, Paulo C�sar Pereio foi not�cia durante d�cadas. Hoje, aos 79 anos, o ator ga�cho procura se manter longe delas. “N�o d� para ligar a TV, se n�o for para ver um filme. As not�cias, � melhor desligar. S� se fala em quantos j� morreram, muita trag�dia. Al�m disso, prefiro ler. Tem sido bom para colocar leituras em dia”, afirma.
Pereio � uma das pessoas de passado not�vel nas diversas atividades art�sticas e culturais que vivem no Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro. Hoje, h� 50 moradores l�.
“Aqui � um lugar para descansar, passar o fim da vida de maneira confort�vel. Ent�o, n�o h� cont�gio. Ningu�m entra, ningu�m sai, n�o h� visita de filho. Estamos realmente em quarentena”, diz Pereio, sobre a casa instalada em 1918 para receber artistas aposentados.
Com extensa filmografia no cinema e na TV e pr�mios de melhor ator conquistados nos principais festivais brasileiros, Pereio recorre aos filmes nas horas de descanso no Retiro, mas tamb�m aos livros. “A literatura � cheia de refer�ncias passadas sobre isso”, diz, em refer�ncia � pandemia do novo coronav�rus. “Eu me lembro do livro A peste, do Albert Camus, que fala sobre um lugar na Arg�lia totalmente devastado por uma doen�a. O cinema tamb�m tem muitos filmes sobre isso.”
Ainda refletindo sobre o surto da COVID-19, o ator cita que, “na hist�ria da humanidade, foram muitas epidemias, pestes, como a bub�nica, ou a gripe espanhola. Tanto que no ingl�s gripe se fala flu, que vem do espanhol ‘influenza’. Hoje, as pessoas viajam demais. Um dia est�o em Nova York e, uma semana depois, em outro continente. Acho que isso torna mais perigoso. Em primeiro lugar, penso em me defender, em sobreviver, mas, evidentemente, � uma chance para refletirmos sobre a fragilidade do ser humano”.
Outra residente do Retiro dos Artistas � a cantora carioca Leny Andrade, atualmente com 77. A artista, que se destacou como um dos principais nomes do jazz nacional nos anos 1960, � direta ao descrever a situa��o atual: “Tem sido muito duro para todo mundo”.
Em contato apenas com suas duas cuidadoras, ela lamenta a rotina sem visitas ou passeios, mas entende a gravidade do momento. “Tenho assistido muita � elevis�o, aos notici�rios, n�o � mole. Mas eu me sinto sempre protegida. Aqui � um espet�culo, janto bem todos os dias, tenho todas as mordomias, o carro me pega aqui em cima, desce comigo, e minha secret�ria Val�ria est� sempre comigo”, conta.
LI��O
Leny � otimista em rela��o ao futuro e espera que a sociedade tire li��es da pandemia. “N�o se pode sofrer tanto para n�o se levar nada. Algo a gente tem que levar. Sabemos pouco ainda sobre esse v�rus, mas tem que sobrar algo (de bom) para a gente”, opina.
Com uma fala cansada, mas l�cida, ela aproveita para elogiar Minas Gerais. “Sou apaixonada por Minas, teria escolhido nascer a�. Sou louca pela comida, pelo jeito das pessoas. � uma coisa linda”, afirma a cantora, que se mostra zelosa pela sa�de do rep�rter antes de desligar o telefone: “N�o se esque�a de usar m�scara, t�?”.
Desde o in�cio da quarentena, os cuidados foram intensificados no local. Al�m de cancelar as visitas e as sa�das dos residentes, o quadro de funcion�rios entrou em regime de revezamento, com equipe menor, passando v�rios dias no local.
Presidente do Retiro dos Artistas, o ator Stepan Nercessian lembra que, “nessa faixa et�ria, � sempre risco”, mas refor�a: “Agora � agravado. Nossa preocupa��o com gripe � sempre grande. Todos os anos temos vacina��o, muita preocupa��o, porque a morte � uma coisa que ronda, por causa da idade mesmo. Neste ano, a amea�a � mais grave, mas, felizmente, at� agora nada”, diz ele, citando que n�o houve no Retiro nenhum registro de caso ou mesmo suspeita de COVID-19.
Se os cuidados com os residentes foram redobrados, as receitas ca�ram pela metade. Segundo Nercessian, o custo das atividades, que chega a R$ 147 mil mensais, � totalmente viabilizado por doa��es de pessoas ou empresas.
A queda de 50% nas receitas gera apreens�o. “A maior necessidade agora � dinheiro. S�o as despesas, folha salarial dos nossos 40 funcion�rios, despesas com rem�dios, limpeza e alimentos. O restante das coisas est� funcionando bem, quem fazia nata��o continua fazendo, todas as atividades, exceto sair para a rua ou receber visitas”, afirma ele. No site da institui��o (www.retirodosartistas.org.br) h� orienta��es sobre como fazer doa��es.
Ator e ex-deputado federal, hoje com 66 anos, Stepan diz cumprir o isolamento rigorosamente em sua resid�ncia, no Rio de Janeiro. Desde que a quarentena come�ou, foi ao Retiro apenas duas vezes, segundo conta – uma para recepcionar o ex-goleiro Manga, agora residente do local, e outra para gravar uma entrevista para a TV Globo, na qual refor�ou o pedido por doa��es. Apesar das dificuldades, ele destaca que o clima ainda � de tranquilidade e esperan�a.
“Temos um relacionamento de muita confian�a, h� um n�cleo bem familiar entre todos eles e temos �timos assistentes sociais. Tudo foi muito conversado e temos a sorte de que as cabe�as dessa ‘rapaziada’ que vive l� � muito boa, � um pessoal muito inteligente e consciente. N�o foi nada trabalhoso. Eles perceberam a gravidade da situa��o desde o come�o. Al�m disso, quem mora l� � acostumado ao isolamento, s�o pessoas que j� lidam com certa solid�o. Ent�o cada um tem seus afazeres, h� quem goste do viol�o, outros de cuidar das plantas. � uma rotina de poucas sa�das. O desconforto � mais por saber que h� um impedimento”, explica o presidente do Retiro.
Mineiro
Um dos moradores mais recentes do abrigo carioca � o ator mineiro Ruy Rezende, de 81, que se mudou para l� em novembro passado. A ida de Ruy para o Rio s� ocorreu porque o projeto que viabilizaria um abrigo semelhante em Belo Horizonte nunca saiu do papel, mesmo aprovado duas vezes no Plano Plurianual de A��o Governamental (PPAG) da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. A �ltima delas em 2017. � o que garante Magdalena Rodrigues, diretora do Sindicato dos Artistas e T�cnicos em Espet�culos de Divers�es do Estado de Minas Gerais (Sated).
De acordo com ela, “foram duas aprova��es, mas nunca botamos a m�o no dinheiro. Ser aprovado n�o � garantia, pois ainda depende de outras aprova��es parlamentares e governamentais, que nunca sa�ram”.
Magdalena diz que os entraves burocr�ticos para a aprova��o final e execu��o do projeto, or�ado em R$ 200 mil, passaram at� pela promessa de um im�vel, no Bairro Gameleira, que, na verdade, pertencia ao governo federal e n�o poderia ser utilizado na iniciativa.
Embora o projeto de uma casa de acolhida para artistas aposentados ou idade avan�ada em BH ainda exista, a presidente do Sated se mostra pessimista em rela��o �s possibilidades de ele se realizar. “A cada ano fica mais inexequ�vel. Primeiro, porque n�o h� reconhecimento do poder p�blico de que isso seja necess�rio. Depois, porque n�o temos nem sequer a compreens�o da sociedade, ainda que ela esteja em casa, consumindo cultura. O que temos visto � que a sociedade � a primeira a reprovar qualquer ajuda financeira para a cultura", lamenta.
Na aus�ncia de um retiro pr�prio na capital mineira, em 2015, o Sated ajudou a atriz mineira Wilma Henriques, ent�o com 84 anos, a se hospedar em um lar de idosos particular de BH. Magdalena esclarece que foi um “conv�nio pontual” e que, atualmente, a pr�pria artista banca sua mensalidade.
“Sentimos falta de poder dar uma assist�ncia para ela. N�o s� para ela, mas para todos. Est�o sem apoio aqui”, diz, citando o exemplo de Ruy Rezende. “Se tiv�ssemos nosso abrigo, seria bem mais f�cil.” Desde mar�o, o sindicato tem arrecadado donativos para envio de cestas b�sicas para artistas em necessidade, t�cnicos e suas fam�lias.