
"Decidi inventar personagens e situa��es a ponto de, em determinado momento, n�o saber mais o que era real e o que eu criei"
Tony Bellotto, escritor e compositor
A ep�grafe de um trecho de Pais e filhos, do russo Ivan Turgu�niev, indica o caminho do novo romance de Tony Bellotto, Dom, inspirado em acontecimentos reais. “O que mais me atraiu na hist�ria foi a trag�dia familiar”, reconhece o escritor e m�sico, guitarrista dos Tit�s. E que hist�ria: no Rio de Janeiro do in�cio dos anos 2000, um jovem de classe m�dia, filho de um policial aposentado, torna-se o chefe de uma quadrilha especializada em roubos de resid�ncias luxuosas. Entre “perigos e prazeres, armadilhas e maravilhas”, Pedro Dom segue em frente, driblando o destino. At� que, em setembro de 2005, aos 23 anos, n�o consegue mais: � morto a tiros depois de um cerco policial. “Para narrar a jornada de um anti-her�i tr�gico, alterei a realidade na tentativa de revelar a sua ess�ncia”, explica o autor, que complementa, em nota no livro: “O romance obedece �s engrenagens da minha imagina��o”.
Por meio de Breno Silveira, da Conspira��o Filmes, Bellotto conheceu o agente da pol�cia aposentado Victor Lomba, pai de Pedro Dom. O cineasta, diretor de sucessos como 2 filhos de Francisco, contou ao escritor que gostaria de fazer um longa-metragem e acertou que o m�sico seria o roteirista. O projeto empacou e Bellotto n�o chegou a desenvolver um roteiro. Anos depois, o policial o procurou novamente e disse: “O filme n�o deu certo, mas a hist�ria do meu filho tem que ser contada”. Bellotto respondeu que n�o tinha interesse em fazer uma biografia jornal�stica e voltou a engavetar a ideia. Literalmente. At� o dia em que a mulher, a atriz Malu Mader, encontrou em uma gaveta as anota��es do marido, que releu o que havia escrito e avaliou: “Isso pode dar um romance”. Decidiu inventar uma hist�ria a partir dos pontos que havia anotado e engrenou na escrita.
Silveira tamb�m retomou o projeto audiovisual, agora no formato de s�rie e protagonizada por Gabriel Leone, e acertou a produ��o com a Amazon Prime Video, ainda sem confirma��o de estreia. “A hist�ria original j� era cheia de lacunas, com passagens controversas e mal explicadas, muito complexa para ser narrada com a objetividade jornal�stica. Decidi inventar personagens e situa��es a ponto de, em determinado momento, n�o saber mais o que era real e o que eu criei”, revela Bellotto, em isolamento social com a fam�lia em Penedo (RJ), entre o Rio e S�o Paulo.
No romance, Victor Lomba, que chegou a fazer parte do Esquadr�o da Morte durante a ditadura e morreu recentemente, � um personagem t�o marcante quanto o protagonista. “Era um homem muito angustiado e que se sentia muito culpado pelo filho ter se tornado um bandido”, lembra Bellotto. Os encontros e desencontros de Victor e Pedro rendem algumas das passagens mais fortes do livro. A cita��o de fatos hist�ricos marcantes e a altern�ncia de tempos verbais enriquecem a narrativa �gil, pontuada por epis�dios de a��o criminosa que beiram a inverossimi- lhan�a... s� que aconteceram.
“A vida do personagem foi intensa, r�pida, euf�rica, acelerada pelas drogas qu�micas como a coca�na. Tentei imprimir um pouco desse ritmo”, afirma o escritor. Instado a comparar o livro a uma m�sica, ele se lembra de um sucesso de sua banda nos anos 1980: “� como ouvir Pol�cia, mas tocada pelo Sepultura”.
"A vida do personagem foi intensa, r�pida, euf�rica, acelerada pelas drogas qu�micas como a coca�na. Tentei imprimir um pouco desse ritmo"
Tony Bellotto, escritor e compositor
COPACABANA
Dom tem como cen�rio o bairro carioca de Copacabana, descrito como “um outro mundo”, bem diferente do lugar familiar e acolhedor que aparece na s�rie de romances protagonizada pelo delegado Espinosa, de Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020). “A dele � mais calorosa, afetiva. A Copacabana do Pedro Dom, que conheci quando fui morar no Rio, nos anos 1980, � fe�rica, efervescente, com turistas, travestis, velhos, traficantes, todos no mesmo espa�o. Um lugar muito louco”, resume Bellotto.
Ele ainda sente o impacto das mortes de Garcia-Roza e Rubem Fonseca, com apenas um dia de intervalo, no m�s passado. “Sinto-me um pouco enfraquecido. � como perder dois craques de um mesmo time”, diz, referindo-se aos escritores brasileiros de romances policiais.
O m�sico chegou a trabalhar com Fonseca no roteiro da s�rie Mandrake. “Aprendi muita coisa. Ele vivia dizendo, por exemplo, que a frase pode at� ser enigm�tica, mas tem que ser clara. Tamb�m que um livro pode ser tudo, s� n�o pode ser chato.”
O d�cimo romance de Bellotto resulta da li��o do mestre. Tem sexo e drogas, morro e asfalto, conflitos familiares e assaltos cinematogr�ficos, bandidos atraentes e policiais corruptos. Dom � tudo, menos chato.
TRECHO
“Sim, h� muito a fazer e incont�veis pessoas a reencontrar, mas a primeira coisa que Pedro Dom faz quando chega ao Rio, depois de dispensar Jasmim com um ‘obrigado’ e um beijo que ela toma mais como afronta do que agradecimento, � caminhar por Copacabana. Mas n�o caminha simplesmente por caminhar pelas ruas do bairro que sempre lhe proporciona uma euforia espec�fica, como uma vit�ria secreta. Ele tem um objetivo definido: a Rua Barata Ribeiro. � para l� que se dirige, entre camel�s na cal�ada, um gordinho com chap�u de marinheiro, um b�bado desequilibrado. Olha para o sol e fecha os olhos, fruindo o reencontro com a fauna secreta da escurid�o, os vaga-lumes invis�veis de Copacabana que s� ele v� e que parecem mais abelhas do que vaga-lumes. A velha excita��o est� de volta, isto, sim, define liberdade: caminhar por Copacabana.”
DOM
- De Tony Bellotto
- Companhia das Letras
- 339 p�ginas
- R$ 74,90