Sai no Brasil 'A grande gripe', retrato aterrador de uma pandemia
Livro do historiador John M. Barry reconstr�i as circunst�ncias da epidemia surgida em 1918, revelando aspectos da busca cient�fica por solu��es e o impacto das mortes na sociedade
O autor John M. Barry, cujo livro foi recomendado por Bill Gates como leitura necess�ria na atual pandemia do novo coronav�rus
(foto: Chris Granger/Divulga��o)
� aterrorizante, mas fascinante em igual medida. Um livro publicado originalmente h� 16 anos, sobre acontecimentos de 102 anos atr�s, carrega uma atualidade gritante. Infelizmente. At� ent�o in�dito no Brasil, A grande gripe (2004), do jornalista e historiador norte-americano John M. Barry, acaba de ganhar edi��o nacional pela Intr�nseca.
O t�tulo, obviamente, refere-se � gripe espanhola (1918-1920), o maior paralelo que podemos ter com a pandemia do novo coronav�rus em curso. Ainda que a gripe – que dizimou entre 21 milh�es, a estimativa mais baixa, e 100 milh�es de pessoas, como acreditam alguns epidemiologistas contempor�neos – seja um tema corrente desde que a quarentena tenha se iniciado, Barry vai muito al�m de recontar essa hist�ria.
A grande gripe traz seu aspecto de reportagem de f�lego, com a escrita fluida do autor nos levando diretamente para os acontecimentos do in�cio do s�culo 20. Mas uma epidemia envolve tudo e todos. Tanto que a leitura vai tamb�m por outras searas, com o historiador ora versando sobre os (des) caminhos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ora explicando aspectos mais cient�ficos. Quando vai tratar dessa quest�o, toma para si que os leitores n�o t�m que saber muito sobre o assunto e, assim, ele apresenta, por exemplo, a evolu��o de v�rus e bact�rias de forma acess�vel.
Hospital de emerg�ncia do Ex�rcito dos Estados Unidos, em 1918.
A imagem integra o livro A grande gripe, de John M. Barry
(foto: Acervo do Museu Nacional de Sa�de e Medicina)
EPICENTRO
O t�tulo � lan�ado quando o Brasil se torna o novo epicentro da pandemia, gra�as a um tour de force editorial. A edi��o envolveu diretamente 11 profissionais: seis tradutores, tr�s preparadores, um revisor e um revisor t�cnico.
Para quem se apega a credenciais, A grande gripe � ainda um dos t�tulos que Bill Gates sugere para ler na pandemia. Em sua j� tradicional lista anual de sugest�es, divulgada h� alguns dias, o bilion�rio, cofundador da Microsoft, afirma que o livro “� um bom lembrete de que ainda estamos enfrentando muitos dos mesmos desafios”.
Na dedicat�ria da obra, Barry d� especial aten��o a Paul Lewis (1879-1929), que integrou a primeira gera��o de m�dicos cientistas dos EUA e um dos principais pesquisadores da causa, da cura e da preven��o contra a gripe. O patologista, morto na Bahia quando veio ao pa�s pesquisar a febre amarela, se soma a uma s�rie de nomes not�veis sobre os quais o autor discorre.
O primeiro ter�o da narrativa se debru�a na trajet�ria de pesquisadores como Lewis e sobre como eles desbravaram um terreno in�spito. Os Estados Unidos, at� as �ltimas d�cadas do s�culo 19, eram sin�nimo de atraso cient�fico. M�dicos se formavam em universidades sem nunca ter encostado em um paciente; faculdades de medicina (e estamos falando inclusive daquelas que hoje integram a Ivy League) n�o contavam com um s� microsc�pio e pouco davam acesso aos alunos �s suas bibliotecas.
O avan�o cient�fico estava na Europa, especialmente na Alemanha. A partir da cria��o da Johns Hopkins, em Baltimore, em 1876, o cen�rio, ainda que a passos lentos, come�a a mudar.
Barry se dedica com paix�o aos personagens, tecendo perfis biogr�ficos cheios de detalhes. Um dos nomes que emergem na narrativa � William Henry Welch (1850-1934), que o autor considera a pessoa mais poderosa da hist�ria da medicina americana. Desacreditado no in�cio da carreira, Welch, um solit�rio genial que sempre se manteve distante das rela��es pessoais, foi um dos professores da Hopkins que fundou o hospital da institui��o.
Atuante no corpo m�dico do Ex�rcito dos EUA durante a Primeira Guerra, desempenhou um papel determinante na resposta � pandemia de gripe espanhola. H� detalhes demais – ficamos sabendo, por exemplo, que o m�dico do interior do Kansas que se atentou para os primeiros casos da futura pandemia era um beberr�o inveterado. Para os leitores mais interessados na a��o, digress�es do autor podem atrasar a leitura.
A grande gripe vai sendo desenhada como “o primeiro grande choque entre a natureza e a ci�ncia moderna”, escreve Barry. A gripe espanhola teria se originado em um lugarejo perdido no mundo: o condado de Haskell, no Kansas. O pr�prio autor recupera tal narrativa, mesmo afirmando que n�o h� como ter 100% de certeza de que ela � ver�dica.
SURTO
A partir do primeiro surto, em janeiro e fevereiro, ela desapareceu daquele lugarejo. N�o estivesse o mundo em guerra – os EUA entraram na Primeira Guerra em abril de 1917 – talvez o ocorrido no Kansas n�o tivesse se alastrado. Fato � que, j� em mar�o, as bases militares que recebiam soldados de Haskell registraram os primeiros surtos de gripe. Foi uma quest�o de semanas para que os americanos enviados para combater na Europa levassem a gripe, que ganhou o mundo.
A Espanha, que se mantivera neutra no conflito, publicava as not�cias da pandemia, enquanto os demais pa�ses, em guerra, tinham a imprensa censurada. Da� o nome “gripe espanhola”, pois era nos jornais daquele pa�s que a hist�ria estava sendo contada.
O autor acompanha, muito de perto, as consequ�ncias. Nos hospitais, transformados em verdadeiros campos de batalha, Barry descreve tratamentos feitos na base da tentativa e erro. Houve m�dicos que prescreveram morfina e hero�na aos pacientes. O livro destaca at� mesmo tratamentos � base de sanguessugas.
A gripe veio em ondas. Se no primeiro semestre de 1918 houve poucas mortes, j� na metade do segundo a letalidade foi aterradora. Meticuloso, Barry n�o poupa o leitor. “Os corpos ficavam nas casas onde tinham morrido e, quando morriam, muitas vezes fluidos de sangue escorriam de narinas e bocas. As fam�lias cobriam os corpos com gelo; mesmo assim, os cad�veres come�avam a apodrecer e a feder.”
N�o faltaram decis�es erradas. Apesar da propaga��o da gripe na �poca, as autoridades da Filad�lfia prosseguiram com um desfile que reuniu 200 mil pessoas para promover os t�tulos do governo emitidos para pagar a Primeira Guerra.
Tr�s dias depois da parada, todos os leitos dos 31 hospitais da cidade estavam ocupados, tanto que as institui��es passaram a recusar pacientes. Os enfermeiros recusavam subornos que chegavam a US$ 100, o livro destaca.
Tamb�m nos relat�rios m�dicos da �poca s�o descritas medidas que tentam evitar a contamina��o. O uso de m�scaras revelou-se bem-sucedido; evitar aglomera��es foi “uma das medidas mais vitais para combater o cont�gio”.
Colocada em perspectiva no livro, a pandemia de um s�culo atr�s � uma hist�ria de morte, trag�dia, erros, mas tamb�m de descobertas da ci�ncia e de como se pode mudar a maneira de pensar. Uma reflex�o e tanto para os tempos de agora.
TRECHO
“Normalmente, a gripe mata principalmente idosos e crian�as, mas, na pandemia de 1918, aproximadamente metade dos que morreram eram homens e mulheres jovens no auge da vida, na faixa dos 20 aos 30 anos. Harvey Cushing, na �poca um jovem e brilhante cirurgi�o que alcan�ou grande fama – e que ficou desesperadamente doente com a gripe e nunca se recuperou de todo de uma prov�vel sequela – chamaria aquelas v�timas de ‘duplamente mortas por terem morrido t�o jovens’.
N�o � poss�vel ter certeza, mas, se a estimativa mais alta de n�mero de mortes for correta, de 8% a 10% de todos os jovens adultos da �poca podem ter morrido por causa do v�rus.
E morreram com ferocidade e rapidez extraordin�rias. Embora a pandemia de gripe tenha se prolongado por dois anos, talvez dois ter�os das mortes tenham ocorrido em um per�odo de 24 semanas, e mais da metade dessas mortes se deu em menos tempo, de meados de setembro a in�cio de dezembro de 1918. A gripe matou mais pessoas em um ano do que a peste bub�nica da Idade M�dia em um s�culo; matou mais pessoas em 24 semanas do que a AIDS em 24 anos.”