
A chilena Isabel Allende, que publicar� em novembro um livro de n�o fic��o sobre feminismo intitulado O que n�s mulheres queremos, � uma escritora disciplinada com uma tradi��o conhecida: todo 8 de janeiro, ela se senta para escrever um novo texto. Neste ano, n�o foi diferente, mas a pandemia significou um desafio. Autora de A casa dos esp�ritos, ela acentua que a crise do coronav�rus acabou expondo as desigualdades que continuar�o provocando protestos em massa nos Estados Unidos e no mundo, e que caber� aos jovens trabalhar por uma nova normalidade na qual homens e mulheres compartilhem a gest�o do planeta.
Nesta entrevista, a escritora, de 77 anos, falou de seu processo de escrita, sua vis�o de um mundo p�s-pandemia e sua interpreta��o dos protestos nos Estados Unidos.
Como a pandemia interrompeu sua rotina?
A pandemia, o confinamento, o medo do v�rus e todos os protestos que est�o ocorrendo deixam as pessoas bloqueadas. N�o � f�cil. Acontece comigo, mas sou muito disciplinada. Metade do trabalho � aparecer no computador na mesma hora. Olha, � poss�vel que o fa�a num dia e n�o sirva para nada. Mas n�o importa. � assim que os livros s�o feitos. Pouco a pouco e com paci�ncia.
A pandemia est� influenciando sua obra?
A pandemia vai produzir uma onda, uma avalanche, de novas interpreta��es da realidade. N�o apenas na arte, mas na filosofia, na hist�ria, em tudo. Tudo vai ser reinterpretado. Mas no meu caso, preciso de tempo e dist�ncia para ver as coisas. Poderia ter escrito A casa dos esp�ritos depois do golpe militar no Chile, em 1973. Demorei mais de oito anos para escrev�-lo, porque precisava desse tempo para digerir o que havia ocorrido e poder ver de longe, com ironia. E acredito que vou passar o mesmo com isso.
Descobriu algo gra�as ao confinamento social?
O que a pandemia me ensinou � a soltar coisas, a me dar conta do pouco que preciso. N�o preciso comprar, n�o preciso de mais roupas, n�o preciso ir a lugar nenhum, viajar. Me parece que tenho demais. Vejo ao meu redor e me pergunto: 'para qu� tudo isso. Para qu� preciso de mais de dois pratos?'. Depois, me dar conta de quem s�o os verdadeiros amigos e as pessoas com quem quero estar.
O que acha que a pandemia ensina a todos?
Est� nos ensinando prioridades e est� nos mostrando uma realidade. A realidade da desigualdade. De como algumas pessoas passam a pandemia em um iate no Caribe e outras passam fome. Tamb�m nos ensinou que somos uma s� fam�lia. O que se passa com um ser humano em Wuhan, se passa com o planeta, se passa com todos n�s. N�o existe essa ideia tribal de que estamos separados do grupo e de que podemos defend�-lo, enquanto o resto das pessoas se esfrega. N�o h� muralhas, n�o h� paredes que possam separar as pessoas. Os criadores, artistas, cientistas, todos os jovens, muit�ssimas mulheres, est�o considerando uma nova normalidade. N�o querem voltar ao que era normal. Est�o se perguntando que mundo queremos. Essa � a pergunta mais importante deste momento. Esse sonho de um mundo diferente: temos de ir para l�.
Como esse mundo seria diferente?
Seria o fim do patriarcado. Chega desses machos rudes que governam o mundo e que administram tudo. Uma humanidade na qual a gest�o do planeta seja compartilhada igualmente entre homens e mulheres. A rea��o masculina diante de uma emerg�ncia, uma crise, uma amea�a, � escapar ou combater. A das mulheres � fechar um c�rculo, colocar as crian�as no meio e ver como resolvem isso em grupo. As mulheres t�m uma maneira democr�tica, inclusiva e circular de solucionar os problemas e enfrentar a amea�a. Os homens, n�o. Por isso, ao administrar o mundo, os valores femininos e masculinos devem ter o mesmo peso. Que n�o seja a viol�ncia e a gan�ncia o que governa o mundo, mas a solidariedade, a compaix�o, a ilus�o. Esse � o mundo que queremos, um mundo no qual haja respeito pela natureza e por outras esp�cies. Os jovens v�o herdar o mundo que n�s destru�mos. S�o eles que precisam salvar o planeta, se � que � poss�vel salvar. Que eles tragam uma solu��o positiva.
O que acha dos protestos raciais nos Estados Unidos?
Os protestos no Chile come�aram em outubro do ano passado. Eram pela tremenda desigualdade. (Nos Estados Unidos), os protestos s�o pelo problema racial e isso est� diretamente relacionado � pobreza. Quem s�o os mais pobres neste pa�s? Quem s�o os que t�m menos assist�ncia m�dica, menos emprego, os que sofrem mais viol�ncia policial, os que s�o mais presos? Os afro-americanos. Eu acredito que v�o come�ar a surgir esses confrontos em todos os lugares. Agora veio uma tremenda crise econ�mica global. E isso vai gerar mais desemprego, mais pobreza e, portanto, mais viol�ncia. Vamos ter protestos massivos. N�o ser�o resolvidos com balas de borracha nem com g�s lacrimog�neo, mas, sim, resolvendo as causas. S�o profundas e v�o desde os tempos da escravid�o em diante. (AFP)