Na faixa de abertura, DDGA, o rapper de Tabo�o da Serra, Regi�o Metropolitana de S�o Paulo, abre o jogo. “N�o falaria de al�vio se n�o tivesse do�do tanto/ Tanto que eu n�o pude ser o mesmo ou o mesmo de antes”, declama ele, em tom confessional, sob um instrumental que mistura synths, piano e sanfona.
“Dolores Dala � um esp�rito do tempo dentro do reino das f�bulas. E esse t�tulo � comprido assim para enaltecer esse g�nero liter�rio. O nome tamb�m vem de dor, s� que decidi colocar em espanhol, com o intuito de situ�-lo como origin�rio da Am�rica Latina”, explica.
Resultado do que o artista chama de ''pr�ticas de aus�ncia'', o trabalho come�ou a nascer nos �ltimos meses de 2017, quando Rico considera que passou a recalcular para onde sua carreira estava caminhando.
“Naquele momento, eu parei e comecei a rever as concess�es e negocia��es que fiz para chegar onde estava. A partir disso, pude estabelecer o que escrever, como escrever, qual sonoridade gostaria de abordar e, narrativamente, o que fazer com tudo isso.”
Mudou como?, segunda faixa do registro, comprova a qualidade das escolhas, em especial a dos parceiros Mahal, produtor musical e ex-integrante do BaianaSystem, e Chibatinha, do grupo �TT��XX�. A can��o soa como um desabafo de algu�m que sofreu por amor, m�xima que est� presente no restante do disco. E, apesar de alguns versos serem raivosos, a constru��o � delicada e a sonoridade, indefin�vel.
INVERS�O
''A gente chegou nesses beats porque quer�amos inverter, de fato, o c�digo. Saio de uma fase em que eu estava flertando abertamente com o pop, com direito ao que tudo isso significa, e pude recobrar o ponto de partida e recalcular a minha rota. As escolhas de timbres que fiz para esse trabalho s�o especiais, porque soam estranhas. Eles n�o est�o exatamente dentro de um g�nero musical. N�o � um pagod�o, um samba-reggae, um brega-funk, um funk 150bpm'', diz.
Prova disso � Braille, tamb�m produzida pelo parceiro de longa data Dinho Souza, que traz uma s�rie de met�foras para retratar as quest�es que envolvem um amor inter-racial.
''Sou uma pessoa muito feliz e realizada com o jeito que essa can��o alcan�ou as pessoas e aborda essa discuss�o'', afirma Rico. ''Mas o que � fundamental sobre ela � que a m�sica realiza uma constru��o muito importante sobre os nossos afetos, coisa que n�o existe. N�o existe uma cartilha sobre o amor no caso das bichas pretas. Porque n�o � s� ir l� e se relacionar. Estamos falando de um pa�s que perpetua, todos os dias, uma ordem colonial. Isso, sem d�vida, acaba esbarrando nos nossos afetos.''
''Caro menino branco, esse nosso encontro pede a lucidez/ De saber o lugar que me encontro, e voc�, por sua vez/ Se � pra andar ao meu lado/ Saiba que algu�m foi senhor, algu�m foi escravo/ E, entre n�s, esse ‘espa�o’ pede alguns passos'', diz o rapper, no meio da can��o.
Na faixa seguinte, Circular 3, a voz da m�e de Rico Dalasam entra em cena para aconselh�-lo sobre a melhor linha de �nibus para cruzar S�o Paulo. Em Vividir, respons�vel por encerrar o trabalho, ele parece prestar contas � pr�pria hist�ria. Desde que surgiu para o grande p�blico, em 2015, ocupando um lugar in�dito na m�sica brasileira, a do rapper queer, Rico Dalasam esteve em diferentes cenas.
De l� pra c�, lan�ou dois EPs – Modo diverso (2015) e Balanga raba (2017) –, al�m do disco Orgunga, em 2016. No meio tempo, abriu show do Racionais MCs, fez parcerias com Emicida e Curumin, e viu sua m�sica com Pabllo Vittar, Todo dia, virar hit do carnaval em 2017.
''S�o tantos os peda�os/ Soltos pelo mundo/ Juntos num abra�o'', canta ele, afinal, na �ltima can��o.
A frase tamb�m se relaciona com a presen�a de Rico no disco de estreia da multiartista Jup do Bairro, Corpo sem ju�zo, lan�ado no �ltimo dia 11. Ao lado de Linn da Quebrada, o rapper canta em All you need is love, um funk que nada tem a ver com a can��o de 1967 dos Beatles.
''Trabalhar com elas � uma realiza��o ancestral'', comemora Rico Dalasam. ''Somos corpos perif�ricos, pretos, discutindo e defendendo humanidades e afetos dentro de contextos de sexualidade. E isso � fundamental, porque funda um lugar inexistente na nossa cultura.''
IMAGIN�RIO
Jup concorda e endossa a fala do parceiro musical. ''Quero que conhe�am a minha hist�ria, mas que n�o termine em mim, quero impulsionar outros corpos novas cria��es de imagin�rio, fortalecer redes afetivas e torn�-las efetivas.''
Natural do Valo Velho, regi�o extrema do Cap�o Redondo, bairro na capital paulista, ela faz sua vers�o do processo de morte e renascimento em um EP constru�do por diversos g�neros e formas de abordar os temas que s�o do seu interesse. Em sete faixas, o trabalho discute sexualidade, pol�tica e o corpo como elemento de ruptura.
''Entendo que a morte acontece de v�rias maneiras, inclusive em vida. Algumas dessas vidas que vivi tive que sacrificar para me tornar quem sou hoje. Acredito que, quando buscamos a necessidade de n�o caducar �s novas possibilidades de vida, exist�ncia e performatividade do que j� fomos, n�o somos mais as mesmas pessoas. Abrimos m�o de cren�as para que sejam substitu�das por novas. Essa aus�ncia de ju�zo vem justamente em aceitar essas mudan�as que percorrem minha mente e meu corpo'', conta ela.
Autodidata e educada pela televis�o, o gosto pela escrita come�ou aos 13 anos, quando ainda n�o tinha pretens�es art�sticas e gostava de materializar seus pensamentos e mem�rias no papel.
''Existem letras que escrevi h� mais de uma d�cada e outras que compus no processo criativo do disco. Acredito que as antigas de que abri m�o n�o me eram mais urgentes, n�o me pertenciam mais. Mas outras ainda me fazem sentido'', explica.
Ao longo de quase 30 minutos, o trabalho � uma esp�cie de tratado sobre um corpo inc�modo e incomodado. O EP flerta com vertentes da m�sica pop mundial, traz uma sonoridade bastante atual e, al�m de Rico e Linn, tamb�m conta com a participa��o de Deize Tigrona no improv�vel hard rock Pelo amor de Deize.
Destaque para a faixa de abertura, Transgress�o, em que a incomum voz da artista � embalada por um instrumental envolvente e crescente, que explode no refr�o. A produ��o dessa e das outras can��es do EP � assinada pela produtora BadSista.
''Temos gostos musicais muito parecidos, e acho que isso se d� por pertencermos � mesma gera��o de consumo musical e, de alguma forma, geogr�fica, j� que ela vem do extremo Leste de S�o Paulo e eu, do extremo Sul. Periferias distintas, mas com uma grande produ��o de arte e cultura marginal'', afirma.
Quinta faixa do registro, Luta por mim � a can��o mais urgente do trabalho. Ao longo de mais de seis minutos, Jup do Bairro fala sobre as lutas e resist�ncias que enfrenta por ser uma transexual preta. A m�sica tamb�m conta com a participa��o do rapper Mulambo.
''� uma triste coincid�ncia que faixas escritas h� tanto tempo ainda fa�am sentido na urg�ncia do cen�rio atual'', lamenta. ''Isso demonstra que o racismo nunca deixou de existir, as dores que a estrutura do sistema causa nesses corpos sempre foram presentes. A diferen�a � que ela veio se sofisticando a ponto de acharmos que havia diminu�do ou sido aniquilada.''
DOLORES DALA, GUARDI�O DO AL�VIO
De Rico Dalasam
Independente
Dispon�vel nas plataformas digitais
CORPO SEM JU�ZO
De Jup do Bairro
Independente/Tratore
Dispon�vel nas plataformas digitais
TODO DIA
Retirada das plataformas digitais desde 2017, a can��o Todo dia deve retornar ao streaming em breve. Rico Dalasam e os produtores Rodrigo Gorky e Arthur Gomes entraram em um acordo sobre os direitos autorais da faixa. A partir de agora Rico, Gorky e Gomes receber�o direitos proporcionais e correspondentes �s fun��es de autores e int�rpretes da can��o. Um dos maiores hits da carreira de Pabllo Vittar, ela foi lan�ada como parte do disco Vai passar mal (2017), o primeiro registro de est�dio da cantora. Entretanto, ap�s uma batalha judicial, a can��o precisou ser retirada das plataformas.