
Enquanto se preparava para obter o t�tulo pela PUC-RJ, entrou em contato com documentos sobre monitoramento de artistas negros, Tony Tornado e Gilberto Gil entre eles. Uma gaveta abriu outras e outras, at� que Pedretti chegou ao processo sobre a pris�o de Caetano Veloso.
� esse o ponto de partida de Narciso em f�rias, document�rio de Renato Terra e Ricardo Calil em que Caetano, sozinho, durante 84 minutos, descortina para a c�mera os 54 dias vividos na pris�o, a partir de sua deten��o, em 27 de dezembro de 1968.
�nico filme brasileiro a participar do 77º Festival de Cinema de Veneza, o primeiro evento do g�nero a ser realizado durante a pandemia do novo coronav�rus, Narciso em f�rias ter� oito exibi��es na cidade italiana, a partir deste domingo (6). Na segunda (7), o filme ficar� acess�vel no Brasil, via plataforma Globoplay.
A pris�o, ocorrida duas semanas ap�s a edi��o do Ato Institucional nº5 (o chamado AI-5, que inaugurou o per�odo mais brutal da ditadura), h� havia sido relatada pelo cantor e compositor, de pr�prio punho, no cap�tulo Narciso em f�rias do livro Verdade tropical (1997). Mas os documentos dos antigos �rg�os federais de informa��o descobertos por Pedretti no Arquivo Nacional representaram uma novidade, inclusive para o m�sico, passados 50 anos do epis�dio.

"Percebemos, durante a entrevista, que o que ele estava falando tinha muita for�a. Na �poca, Caetano estava com 76 anos, revisitando as mem�rias de um jovem de 26. Aquilo nos interessou muito mais do que fazer uma reportagem sobre a pris�o dele"
Renato Terra, codiretor de Narciso em f�rias
ELEI��O
Poucos dias antes do primeiro turno da elei��o presidencial de 2018, Terra e Calil filmaram uma longa entrevista com Caetano (o registro durou entre cinco e seis horas), na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro.
“Percebemos, durante a entrevista, que o que ele estava falando tinha muita for�a. Na �poca, Caetano estava com 76 anos, revisitando as mem�rias de um jovem de 26. Aquilo nos interessou muito mais do que fazer uma reportagem sobre a pris�o dele”, afirma Terra.
A palavra do documentarista e professor Jo�o Moreira Salles foi fundamental para que a dupla de diretores, que vem de longas pautados por documentos e registros de �poca – Uma noite em 67, de 2010, e Eu sou Carlos Imperial, de 2016 – decidisse n�o usar nenhuma imagem complementar � entrevista.
“O Jo�o Moreira Salles nos ensinou v�rias coisas: que o bom document�rio n�o quer ser did�tico, que ele tem que provocar a expe- ri�ncia. Com o depoimento do Caetano no formato minimalista tudo passa a ter relev�ncia: uma pausa, um sil�ncio, um choro, uma palavra mais exaltada”, diz Terra.
Narciso em f�rias � uma realiza��o da Uns Produ��es, de Paula Lavigne, em coprodu��o com a Videofilmes, dos irm�os Walter e Jo�o Moreira Salles. Uma conjun��o de fatores motivou a feitura do filme. J� incomodado com o crescimento da direita no pa�s, que veio culminar na elei��o de Jair Bolsonaro, Caetano recebeu das m�os de Pedretti, naquele in�cio de 2018, os documentos.
ARQUIVOS
“Sugerimos uma mat�ria (jornal�stica), ou algo do tipo, mas o retorno s� veio tr�s meses depois, com a not�cia de que haveria um document�rio (proposta que partiu de Paula Lavigne, que convidou Terra para dirigir). Depois, a Paula entrou em contato e me convidou para ser o pesquisador. Foi quando come�amos a levantar outros arquivos”, conta Pedretti.
O pesquisador se impressionou com a maneira usada pelo regime para ir atr�s de Caetano. “O dossi� permite entender a l�gica do regime autorit�rio. Em 1966, ele teria assinado um manifesto contra a censura a uma pe�a; em 1968, teria participado da Passeata dos 100 mil. H� tamb�m fake news. Falam que ele teria feito um disco chamado Che, que n�o existe. Talvez falassem da m�sica Soy loco por ti Am�rica. Ou seja, na melhor das hip�teses, � um absurdo; na pior, � uma mentira criada. O fato � que pequenas coisas esparsas, quando h� o recrudescimento do regime com o AI-5, se tornam suficientes para justificar a pris�o.”
A gota d’�gua para que a pol�cia invadisse o apartamento em que Caetano e Gil viviam, no Centro de S�o Paulo, e os levasse em uma caminhonete para o Rio foi uma not�cia falsa. Apresentador do programa Guerra � guerra, exibido na �poca pela TV Record, Randal Juliano leu no ar uma not�cia de jornal segundo a qual Caetano e Gil haviam feito uma par�dia do Hino Nacional em “ritmo de Tropic�lia”, nas palavras dos militares, durante um show na boate Sucata, na Zona Sul do Rio.
Aquilo nunca ocorreu. “Os documentos mostram um olhar muito obtuso dos militares sobre quem eram Caetano e Gil, sobre a cultura brasileira. Em momentos em que Caetano l� trechos dos relat�rios no filme d� para ver como tudo aquilo parecia um teatro do absurdo, um pesadelo kafkiano”, afirma Calil.
Al�m do cap�tulo Narciso em f�rias, que est� sendo reeditado como um volume independente pela Companhia das Letras, acrescido de parte da documenta��o at� ent�o in�dita, Caetano j� havia falado sobre a pris�o na s�rie Can��es do ex�lio, produzida pelo jornalista Geneton Moraes Neto (1956-2016).
A J� Soares ele contou, em 1992, no extinto J� Onze e Meia, a hist�ria do programa de Randal Juliano. “Mas a pris�o nunca foi noticiada no Brasil por causa da censura. E depois que a censura acabou, aquilo virou assunto velho, ent�o n�o se explorou mais”, afirma Terra, lembrando que o per�odo no ex�lio em Londres (de 1969 a 1971) � muito mais retratado.
Juntamente com os documentos que desconhecia, Caetano tamb�m descobriu uma fotografia tirada no in�cio de 1969, em que est� com os cabelos curtos, raspados nas la- terais. Suas madeixas haviam sido desbastadas no per�odo da pris�o.
CABELO
“Eles me tiraram da cela e disseram: ‘Ande em frente e n�o olhe para tr�s!’. Eu pensei que eles iam atirar. Mas eles me levaram no barbeiro. Eu tinha um cabelo grande, todo cacheado, grand�o, e eles cortaram meu cabelo. Eu fiquei feliz porque n�o ia morrer, e eu n�o podia nem demonstrar a minha felicidade, adorando aquele barbeiro cortando o meu cabelo”, diz ele, em certo momento da entrevista.
Caetano interpreta tr�s can��es no filme. Terra, criada a partir do impacto causado pela primeira vez em que viu as imagens do planeta feitas pelo astronautra William Anders, da miss�o Apollo 8 (as fotografias, da revista Manchete, foram levadas por sua mulher, Ded� Gadelha); Irene, a �nica que ele comp�s na cadeia, e Hey Jude (Paul McCartney).
“No filme, voc� passa a vivenciar o jeito Caetano de contar as coisas. Ele fala da ang�stia da pris�o de forma muito �ntima. Fala, por exemplo, que n�o conseguia gozar, porque nem sequer conseguia ter uma ere��o. E tamb�m n�o conseguia chorar. Acaba fazendo um paralelo entre a l�grima e o esperma. Eu, que acompanho bastante a vida dele, nunca o tinha ouvido falar desse jeito. Jo�o Moreira Salles chegou a comentar que o filme n�o o coloca nem como her�i nem como v�tima”, diz Terra.

EM FORMA DE LIVRO
Com lan�amento previsto para o pr�ximo dia 9 de outubro, o volume Narciso em f�rias, editado pela Companhia das Letras (168 p�ginas, R$ 59,90), re�ne o cap�tulo hom�nimo de Verdade tropical (1997), em que Caetano Veloso relata os dias vividos no c�rcere, al�m de uma compila��o dos documentos do processo aberto pela ditadura militar contra o cantor e compositor. Para esta edi��o, Caetano escreveu um novo texto de apresenta��o.
NARCISO EM F�RIAS
No Festival de Veneza (fora de competi��o)
Sess�es no domingo (6), �s 22h15; na segunda (7), �s 14h (sess�o de gala); e na ter�a (8), �s 9h15, 13h45, 14h15, 14h30, 16h45 e 17h.
No streaming
Estreia nesta segunda (7), na Globoplay.
