Secos e Molhados, com Ney Matogrosso, Jo�o Ricardo e Gerson Conrad, continua recebendo propostas milion�rias para shows reunindo os tr�s artistas, mas apresenta��o est� descartada
Fernando Seixas/O Cruzeiro/EM/D.A Press - 30/1/1974
H� 50 anos, o Secos e Molhados desabrochou uma rosa radioativa na paisagem musical do Brasil. Sonora, aquela flor irradiou melodias lis�rgicas que tomaram conta de todo o pa�s. A “antirrosa at�mica”, do poema “Rosa de Hiroshima”, escrito por Vinicius de Moraes em 1946, se tornou uma can��o do primeiro disco da banda, que desferiu um golpe sorrateiro, mas n�o menos contundente, na ditadura militar.
Hoje, “Secos e Molhados” representa a express�o m�xima do fen�meno art�stico mais impactante do in�cio dos anos 1970. � androginia das interpreta��es de Ney Matogrosso, se somaram os viol�es de G�rson Conrad e de Jo�o Ricardo, que tamb�m criava as melodias para obras de poetas consagrados. As comemora��es do cinquenten�rio, no entanto, s�o t�midas.
Um show reunindo os tr�s artistas est� descartado. Desde os anos 1980, o trio recebe propostas milion�rias, de uma TV alem� � Prefeitura de S�o Paulo, para tocar juntos, mas a falta de entendimento dos integrantes permanece.
Ney e Conrad mant�m contato. Neste ano, at� gravaram juntos uma m�sica, “O Fio do meu destino”, muito pelo �mpeto agregador de Rog�rio Batalha, o autor da letra.
“Primavera nos dentes”, livro de Miguel de Almeida que conta a hist�ria da banda, foi relan�ado pela editora Record. O document�rio de mesmo nome, agora previsto para outubro, quase foi proibido de ser exibido no Canal Brasil.
CARETICE Jo�o Ricardo continua afastado dos antigos parceiros. Ele tentou proibir, na Justi�a, o uso das can��es no filme, mas acabou perdendo. H� 10 anos, o m�sico j� havia proibido o uso de sua imagem, que acabou literalmente apagada, da autobiografia de Conrad.
“Achei uma caretice dele. Na verdade, entendo o lado dele. Dou a minha vers�o da hist�ria, e o G�rson d� o lado dele. Ele foi o vil�o. Tem medo de ser visto como vil�o, mas foi. Ele e o pai dele. E tem medo de isso ser exposto”, diz Ney. Jo�o Ricardo n�o respondeu aos contatos da reportagem.
No fim dos anos 1960, Conrad e Jo�o come�aram o Secos e Molhados. F�s de rock, Bob Dylan e Crosby, Stills, Nash & Young, moravam h� menos de 100 metros de dist�ncia, nos Jardins, em S�o Paulo.
Conrad, que estudou m�sica erudita, diz que Jo�o, portugu�s e filho do poeta Jo�o Apolin�rio, teve a ideia de musicar poemas de autores consagrados, mas tinha consci�ncia de n�o ter talento para ser o vocalista. “Era um m�sico limitado, mas tinha uma criatividade �mpar, e aquilo me fascinava”, afirma. Por isso, os dois sa�ram � procura de uma voz aguda, mas que n�o fosse feminina. A compositora Luhli, autora da letra de “Fala” e “O vira”, e amiga de Jo�o, apresentou Ney.
O encontro ocorreu na casa dela, no Morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em 1970. “Ficamos encantados, aquele timbre de voz dele. E a rec�proca foi verdadeira”, diz Conrad.
Um ano depois, Ney se mudou para S�o Paulo, onde viveu uma maratona de ensaios com o grupo. “Tomei 20 �cidos at� o dia em que entrei na banda. Quando fui para l�, nunca mais tomei. N�o queria que achassem que a minha arte vinha da droga. Tomei �cido para me preparar para ir para l�”, ele afirma.
Da criatividade de Jo�o, surgiram as melodias para “Rond� do capit�o”, poema de Manuel Bandeira inclu�do no livro “Lira dos cinquent’anos”, de 1940, e “Amor”, escrito pelo pai do m�sico. J� Conrad musicou “Rosa de Hiroshima”, que se apresentou para ele de maneira improv�vel.
VINICIUS DE MORAES Certo dia, um livro com a obra de Vinicius de Moraes, que estava em sua escrivaninha, caiu aberto na p�gina do poema. “T�nhamos tomado a decis�o de fazer um trabalho altamente politizado, por�m n�o partid�rio. Ali eu tinha um trunfo na m�o”, diz Conrad.
A natureza metaf�rica dos poemas manifestava, de modo subliminar, a insatisfa��o dos artistas com o regime militar. Ao mesmo tempo, Ney fundava uma linguagem perform�tica pr�pria. No primeiro show do trio, na Casa de Badala��o e T�dio, para 80 pessoas, Ney cobriu o rosto pela primeira vez, com purpurina.
Aliado ao figurino primitivista, interpretou as can��es com dan�as andr�ginas, manifestando o desejo pela liberdade sexual. Sua coreografia malemolente desenhava curvas no ar, formas distantes da retid�o da marcha militar e da ordem repressora. Tal subvers�o se estendia � impureza radioativa das can��es, em g�nero e express�o.
As composi��es de “Secos e Molhados” estavam quase prontas quando eles incorporaram baixo, bateria e uma banda com m�sicos que tocavam numa pe�a em que Ney atuava. Em 1972, lotaram teatros da capital paulista at� que uma reportagem escrita por Moracy do Val, que depois veio a ser empres�rio do grupo, os levou a fechar com uma gravadora, a Continental.
Disco 'Secos e Molhados', lan�ado em agosto de 1973, representa o fen�meno art�stico mais impactante do in�cio dos anos 1970
REPRODU��O
Os arranjos foram desenvolvidos e testados pela nas apresenta��es e ensaios. O baixista argentino Willy Verdaguer, diz Miguel de Almeida, criou os riffs de “Sangue latino” e “Mulher barriguda”. Tamb�m s�o n�tidas as contribui��es do pianista Emilio Carrera, do baterista Marcelo Frias – este, � o quarto elemento na capa do �lbum –, do guitarrista John Flavin e do flautista S�rgio Rosadas.
FORA DO PADR�O Em duas semanas, o �lbum estava gravado. “Os t�cnicos ficavam incomodados porque a gente estava testando sons que n�o eram o padr�o da �poca”, diz Conrad. “As pessoas at� hoje e perguntam: ‘Como voc�s conseguiram gravar (o disco) em quatro canais?’”
Entre as novidades adquiridas no est�dio estava o solo de “Fala”, feito em um teclado moog por Z� Rodrix, e criado de improviso nas grava��es. A sonoridade sint�tica daquela m�quina era uma novidade no come�o dos anos 1970, de car�ter futurista e bastante usada fora do Brasil em discos de rock psicod�lico.
Depois da grava��o no Est�dio Prova, as aspira��es art�sticas de Ney mudaram. At� ent�o, o artista era um hippie que s� pensava em ser ator.
Al�m de “Rosa de Hiroshima” e “Fala”, o �lbum “Secos e Molhados”, lan�ado em agosto de 1973, apresentou “Sangue latino”, com letra de Paulo Mendon�a. O folclore portugu�s de “O vira” se chocou com o rock and roll de “Mulher varriguda”, ainda que as faixas n�o se limitem a um s� ritmo.
LENNON E MCCARTNEY Em geral, as can��es se assemelham pelo contexto contracultural, traduzido por exemplo na distor��o das guitarras el�tricas. O canto em un�ssono e em oitavas distintas representava a abertura a novos planos e realidades, tal como a experi�ncia das drogas alucin�genas.
Ney fazia a voz aguda, Jo�o a grave, e Conrad transitava entre eles. Chamado pela imprensa de George Harrison do Secos e Molhados, ele era sonoramente e pessoalmente o elo entre as personalidades fortes de Ney e Jo�o, assim como Lennon e McCartney.
Em cena, Ney encarnou essa m�sica insinuante. O som estranho se tornava, nele, um corpo estranho ao regime. Combinando poesia, m�sica e dan�a, a arte do Secos e Molhados era de dif�cil apreens�o, mesmo para a censura.
A express�o corporal do vocalista, diz Conrad, os contagiou. “Quando eu e Jo�o percebemos que os trejeitos do Ney atra�am o p�blico, nos aproximamos desse tipo de performance. Eu, que era mais duro, comecei a me soltar”.
Os rostos pintados captavam o zeitgeist da �poca. No come�o dos anos 1970, David Bowie explorava a androginia em “Ziggy Stardust”, mesma �poca em que os punks nova-iorquinos do New York Dolls usavam roupas femininas. Pouco depois, o Kiss despontou pintando o rosto tamb�m de branco.
Em tr�s meses, lembra-se Conrad, o disco vendeu 360 mil c�pias. Em 1974, foram mais de 1 milh�o, ano em que o Secos e Molhados se tornou a primeira banda a desbancar Roberto Carlos do topo da lista Nopem de �lbuns mais vendidos desde que ela come�ou a ser feita, em 1965, segundo o livro “Pav�es misteriosos”, de Andr� Barcinski.
SUCESSO DE MASSA Foi um sucesso pop de massa e imediato sem precedentes na da m�sica brasileira. Eles estavam na TV, eram capa de revista, causavam tumulto quando reconhecidos em locais p�blicos e o sucesso culminou num show hist�rico no Maracan�zinho, em 1974. Foram 369 apresenta��es no espa�o de um ano.
Ao mesmo tempo, os desentendimentos apareciam. O bi�grafo Miguel de Almeida diz que Jo�o Ricardo chegou a dar chutes em Conrad nas escadarias de uma casa de shows por n�o querer que a banda tocasse “Rosa de Hiroshima”, pedida pelo p�blico, no bis.
“Quando somos inocentes, n�s acreditamos na palavra das pessoas”, diz ele. O trio havia quebrado o pacto, firmado no in�cio da carreira: todo o dinheiro seria partilhado igualmente entre os tr�s. Em dado momento, Ney quis at� ganhar um pouco mais. “Eu sabia que quem atra�a o p�blico era o maluco que dan�ava pelado, ent�o achei que tinha de ganhar mais”, afirma.
NOVOS RUMOS Tamb�m em 1974, o rec�m-estreado “Fant�stico”, da Globo, que havia inclu�do n�meros musicais do Secos e Molhados em sua programa��o, lan�aria o segundo disco da banda, com um clipe de “Flores astrais”. Ney, contudo, j� havia decidido seguir carreira solo.
Enquanto isso, Jo�o Ricardo tentava ditar os rumos da banda. Numa viagem ao M�xico, substituiu o empres�rio Moracy do Val pelo pr�prio pai.
Miguel de Almeida se encontrou algumas vezes com Jo�o Ricardo para escrever a biografia. A sensa��o, ele diz, � de que o m�sico quer “ser o �nico propriet�rio da hist�ria da banda e de seu fim”.
Recentemente, diz Almeida, o portugu�s j� chamou Ney de “mulher barbada” e afirmou que o vocalista, um dos grandes nomes da MPB, n�o fez nada relevante ap�s a sa�da do Secos e Molhados.
Sem Ney e Conrad, que gravaram o segundo �lbum do Secos e Molhados, o grupo seguiu com Jo�o e diversas forma��es. Nunca chegou perto do sucesso do disco de 1973.
HIST�RIA EM ABERTO ”Faz 50 anos que a banda acabou, e o Jo�o fica com essa coisa mimada”, diz Almeida. Ele cita uma fala de David Crosby, �dolo do portugu�s, no filme “Echo in the Canyon”, para ilustrar a situa��o.
“Perguntam por que o Crosby brigou com os parceiros. Ele diz que era um idiota, com 20 e poucos anos voc� faz qualquer besteira. Era o caso do Jo�o. Mas ele n�o se perdoa. N�o tem essa humildade.” Nesse impasse, a mem�ria da banda ainda se espraia na sociedade brasileira, com uma hist�ria em aberto. “A m�e do Jo�o dizia que era ‘m�e do Secos e Molhados’”, diz Conrad. “Na �poca, a gente achava engra�ado, mas agora entendemos de outro jeito.”
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