N�lida Pi�on escreve sobre o que move os portugueses
Em 'Um dia chegarei a Sagres' escritora entrela�a a hist�ria do pa�s europeu e o impulso de seu povo ao mar com a hist�ria de um personagem migrante
Com o agravamento de um problema de vis�o, a autora escreveu a m�o sua mais recente obra
(foto: Curta!/Divulga��o)
Quando chegou a Portugal, em 2018, a escritora N�lida Pi�on, uma das mais importantes da literatura brasileira, tinha um objetivo claro: produzir um romance de alma, que reproduzisse o esp�rito navegador que marca a trajet�ria do povo portugu�s, na��o que elegeu o mar como extens�o de seus caminhos. Nasceu, assim, Um dia chegarei a Sagres (Record), obra ambiciosa que retrata, por meio da fic��o, o transcurso hist�rico de Portugal a partir do s�culo 15.
"Desde 2005, tenho esse projeto, mas era necess�rio estar l�", conta N�lida, que n�o publicava um romance desde 2004, quando saiu Vozes do deserto. Era uma exig�ncia visceral: "O livro pedia um tipo espec�fico de pesquisa, pois eu precisava sentir o cheiro exalado pelas colinas, pelas aldeias, especialmente da regi�o de Sagres. Bastava olhar para uma �rvore. Como a hist�ria se passa no s�culo 19, eu necessitava recuperar isso com precis�o".
Um dia chegarei a Sagres acompanha a trajet�ria de Mateus, filho de uma prostituta e de pai conhecido e que � criado pelo av�, Vicente, na regi�o rural do Norte de Portugal. Ali, em meio a uma rotina de escassa expectativa, Mateus abandona a aldeia quando o av� morre, embalado pelo mito do Infante Dom Henrique de Avis, que, no s�culo 15, foi o principal impulsionador da expans�o portuguesa pelos mares. Segue, ent�o, para Lisboa at� chegar � vila de Sagres, onde, reza a lenda, o Infante teria criado uma escola n�utica.
"Mateus busca restaurar a utopia do resgate de Portugal", observa N�lida, que esteve em Sagres, j� no final de sua estada portuguesa. A visita foi decisiva: "Senti a presen�a do Infante Henrique, como se ele estivesse instigando a enfrentar o oceano e, mais importante, senti o vento que sempre empurrou aqueles homens a se aventurarem no mar".
Em sua saga que cruza o pa�s, Mateus descortina o passado e o futuro, apoiado ainda na poderosa poesia de Lu�s de Cam�es e seus Lus�adas. No per�odo de dois anos e dois meses de trabalho, N�lida tamb�m embarcou em uma viagem, mas liter�ria, em que a linguagem lapidada ressalta valores – assim, a aldeia de Mateus torna-se universal, seus animais s�o sacralizados e Deus n�o apenas existe, mas est� presente.
Aos 83, autora se protege do v�rus:“N�o vou nem at� o elevador”
N�lida Pi�on enfrentou enormes desafios f�sicos para finalizar Um dia chegarei a Sagres. "Antes de chegar a Lisboa, passei por Madri, onde faria uma confer�ncia, e quebrei o bra�o. N�o desisti, mas percebi que um problema que limitava minha vis�o estava se agravando", relembra a escritora, que, aos 83 anos, exibe uma invej�vel disposi��o.
A solu��o encontrada foi herc�lea: "Ainda em Lisboa, comecei a escrever a m�o, quase que sofregamente, todos os dias. Minha ajudante, Karla, que entende bem a minha letra, transcrevia cada cap�tulo para o computador".
Assim, o romance nasceu em um rompante, mas com uma estrutura j� bem definida. "Em seguida, iniciei o trabalho da lapida��o das frases, pois invadi o territ�rio sagrado da l�ngua, instrumento que serve ao texto."
J� de volta ao Rio, no ano passado, N�lida chegou a fazer oito vers�es at� chegar � definitiva. "Aperfei�oei o conceito, que j� estava definido desde minha passagem pela Europa, que foi extrair dos portugueses a defini��o de ser luso e da determina��o em se lan�ar pelo mundo", explica a autora, que se imp�s ainda outro desafio: escrever na primeira pessoa e com uma voz masculina, a do personagem Mateus.
"Foi preciso um esfor�o para ser fiel ao sentimento e, principalmente, aos desejos de um homem." Ela se diverte com a rea��o dos amigos pr�ximos, que leram antes o livro e se surpreenderam com a fidelidade com que retrata emo��es masculinas.
Nessa fase, quando se encaminhava para a conclus�o da obra, o mundo j� vivia sob a pandemia do novo coronav�rus e as pessoas, isoladas em suas casas. "Foi o momento ideal para imergir no processo final da escrita, a me debru�ar durante longas jornadas sobre cada frase, a fim de encerrar aquela odisseia narrativa", conta a escritora.
"Desde 12 de mar�o, n�o vou nem ao elevador do meu pr�dio, mas n�o tive nem um momento de mau humor ou depress�o. Meu receio n�o � o de morrer, mas de ficar entubada – n�o quero ficar escrava da vontade alheia."
A obsess�o pelo conceito correto, a palavra perfeita, a frase definitiva � uma marca da obra de N�lida Pi�on, que n�o mede esfor�os at� atingir seu objetivo. Seu romance anterior, por exemplo, Vozes do deserto (2004), exigiu que ela passasse cinco anos �s voltas com a cultura �rabe, lendo o Cor�o (livro sagrado dos mu�ulmanos) e estudando a hist�ria e a mitologia dos povos do isl�. Como a palavra sempre teve um peso valioso para a escritora, nenhum livro seu sai da gr�fica sem um cuidadoso preparo.
TRIUNFO
E, se dependesse de seu editor na Record, Carlos Andreazza, o livro seria lan�ado no pr�ximo ano, quando a pandemia j� dever� ter amenizado. "Eu precisava mostrar que o escritor brasileiro triunfa diante das vicissitudes, especialmente as t�o graves como as que vivemos hoje", explica ela, conseguindo que o livro j� chegasse �s livrarias. O curioso � que Um dia chegarei a Sagres poderia ter nascido h� mais tempo, uma vez que N�lida acalenta o desejo de escrev�-lo desde 2005. "Eu sabia da necessidade de estar em Portugal a fim de fazer as pesquisas, mas comecei a evitar a viagem, pois meu cachorro amado, Gravetinho, teria de viajar no por�o do avi�o, o que seria impens�vel."
� not�ria a paix�o de N�lida pelos animais, c�es em particular. E a morte de Gravetinho, em 2017, depois de 11 anos de conviv�ncia, doeu fundo. "Ele era t�o amoroso que acredito ter morrido para tamb�m me liberar para escrever o romance em Portugal", comenta a escritora, com a voz engasgada.
Perdas e ganhos marcam a vida de qualquer um, em especial de N�lida Pi�on. Em 2 de dezembro de 2015 – a exatid�o traduz o impacto provocado pelo acontecimento daquele dia –, ela foi informada de que padecia de um c�ncer avan�ado, que n�o lhe deixaria mais que seis meses de vida.
Ainda que assombrada, manteve uma calma relativa, que lhe permitiu organizar a pr�pria morte: desde recomenda��es sobre as m�sicas que deveriam ser tocadas em seu vel�rio at� a firme decis�o de n�o ser enterrada trajando o fard�o da Academia Brasileira de Letras
Felizmente, um exame mais apurado realizado meses depois n�o apresentou sequer um vest�gio do c�ncer. Mesmo diante do falso veredicto, N�lida continuou escrevendo um di�rio, que resultou em Uma furtiva l�grima, lan�ado no ano passado. Foi mais uma vit�ria de uma mulher para quem a literatura, mais que uma arte, � uma energia, uma ferramenta para mudar o mundo.