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Estado de Minas LITERATURA

'A casa comum' mostra a separa��o como possibilidade de acordar

No romance de Kaio Carmona, o desamor surge como chande de despertar os ex-amantes da fantasia e lev�-los ao encontro de si mesmos


18/10/2020 04:00 - atualizado 18/10/2020 11:05

Ana Cec�lia Carvalho*
Especial para o Estado de Minas


A casa comum � o primeiro romance de Kaio Carmona e tamb�m o volume que inaugura a Cole��o Desassossego, da Editora Quixote + Do. Conhecido por uma obra po�tica na qual se destacam Comp�ndio de amor, Para quando e a antologia Entrelinhas, entremontes: versos contempor�neos, al�m de Um l�rico dos tempos, Carmona � uma das vozes mais importantes da poesia brasileira da atualidade.

Para A casa comum, o autor traz a sua experi�ncia com a escrita po�tica e o faz com o talento, a consist�ncia, a maturidade e a profundidade daqueles que conhecem bem a natureza dos dramas e das paix�es humanas. 

Esse olhar detido sobre tudo que de outro modo passaria despercebido � o que torna A casa comum uma obra monumental, embora breve em n�mero de p�ginas. Desde o in�cio, o leitor descobre que n�o h� nada comum em A casa comum. Tudo ali � um convite para reflex�o. Ao aceitarmos, mergulhamos em uma experi�ncia que nos tornar� melhores. 

Nesse livro inquietante, ou melhor, “desassossegado”, o autor descreve a hist�ria de uma mulher e um homem que se separam por decis�o dela. Fic��o e prosa po�tica se juntam para nos fazer pensar sobre a natureza do amor e seus desfechos (ou percal�os), j� que o livro mostra que, em uma parceria amorosa, nada � como se imaginou ou se desejou. 

Como j� observaram n�o apenas os terapeutas de casal, tudo que agora contribui para a separa��o j� estava l�, desde sempre, em uma situa��o mais ou menos assim: o que um dia atraiu e uniu os amantes � exatamente o que os separa no futuro. Talvez n�o fosse equivocado dizer que essa situa��o se aproxima da no��o grega de trag�dia, pois tr�gico � tudo aquilo que � previs�vel, mas, infelizmente, n�o pode ser evitado. 
 
Esse aspecto evoca a met�fora da Caixa preta do israelense Amos Oz. Depois de separado o casal, cada um tem de se haver com o que causou a ruptura e ambos constatam que todos os elementos para o desastre j� estavam l�, e - surpresa! - eram os mesmos que antes faziam a engrenagem funcionar. Mas ent�o o que ter� se tornado disfuncional em uma parceria amorosa?

AUT�PSIA 
Para responder a esta quest�o seria necess�rio que cada um se esfor�asse para fazer uma esp�cie de aut�psia da parceria amorosa. Nessa tentativa, descobririam muitas coisas das quais n�o se davam conta naquilo que de fato atraiu um ao outro para que ent�o a separa��o se desdobrasse em um esfor�o necess�rio de diferencia��o.  

Talvez muitos relacionamentos fracassem por n�o terem os parceiros se permitido passar por esse tempo da diferencia��o, de exame da pr�pria posi��o que cada um ocupava na parceria. Talvez por isso existam parcerias que se tornam pactos intermin�veis na infelicidade, mesmo depois de consumado o div�rcio, quando ent�o vemos que os dois sujeitos continuam se perseguindo pelo �dio e pelas provoca��es m�tuas, em uma esp�cie de “gozo mort�fero” na separa��o. 

Sem falar em outras atitudes dr�sticas que s�o os crimes “passionais”, ou naquelas escolhas feitas precipitadamente depois de uma separa��o “mal resolvida”, nas quais aparecem os piores aspectos do relacionamento anterior, com o novo mostrando ser uma caricatura do antigo. A ideia de que “aquilo que n�o compreendemos, tendemos a repetir” parece pertinente aqui.

Al�m dessas dificuldades, existe o sofrimento gerado pela dificuldade de cada um em lidar com o luto que uma separa��o envolve, o sentimento de perda que ela acarreta (a perda do outro e, sobretudo, a perda de si mesmo como objeto amoroso).

Uma das dores mais dif�ceis de se lidar em uma separa��o, ainda que consensual, � ter de enfrentar o fato de que eu n�o existo mais no desejo do outro. O narcisismo ferido d�i e, assim, mobiliza certas defesas que, em geral, incluem provoca��es no outro, em apelos mais ou menos estridentes para me reassegurar da minha pr�pria import�ncia, de que ainda esteja vivo no cora��o dele ou dela. 

O psicanalista Igor Caruso, em A separa��o dos amantes: uma fenomenologia da morte, aborda a situa��o dos que decidem se separar enquanto ainda se amam e o luto que se segue a essa decis�o. Cada um dos parceiros deve descobrir o que de fato foi perdido na separa��o. Para completar esse luto e seguir adiante, cada um tem de estar disposto a abrir m�o da pretens�o de continuar sendo o objeto de amor do outro. 

Em suma: separar n�o � o mesmo que se diferenciar. A diferencia��o envolve um trabalho interno muito diferente. Quando me diferencio, n�o apenas tomo dist�ncia de tudo que idealizo em rela��o ao outro, mas tamb�m consigo uma vis�o ampliada sobre mim mesmo, sobre quem eu era antes e durante a parceria e sobre o que eu projeto para a minha vida da� em diante. 

MUNDOS INTERNOS 
Nesse exame, � preciso ver se as diferen�as entre mim e o outro fizeram expandir ou diminuir os mundos de cada um. Isto �, segundo me parece, o que a personagem da mulher em A casa comum se esfor�a para fazer, quando sai de casa e caminha pelo bairro, em uma “viagem” cujo destino � o reencontro consigo mesma. Ou seja, � medida em que ela se afasta do parceiro e o enxerga “de longe”, ela termina por ver a si mesma, talvez pela primeira vez na vida.   

A bela ep�grafe de Goethe em Afinidades eletivas (o “momento feliz em que os dois amantes despertar�o juntos”) contida em A casa comum merece um coment�rio. Sob a luz dessa refer�ncia, a met�fora da “casa comum” alude � simetria buscada em uma parceria amorosa: a ideia de que, um dia, os dois amantes despertar�o juntos do sono em que se encontravam, alheios ao fato de que dormiam e, enquanto dormiam, sonhavam, realizando desejos (pois essa � a fun��o dos sonhos, segundo Freud), os dois imersos nas pr�prias fantasias de que o outro fosse tudo o que eu sempre quis, de que eu fosse tudo o que o outro idealizado sempre quis. A situa��o dos amantes do romance de Kaio Carmona revira tudo isso. A casa comum � uma hist�ria de amor em que o desamor surge como possibilidade de acordar.

A diferencia��o �s vezes acontece com a separa��o, tal como em A casa comum, quando os dois parceiros j� n�o ser�o os mesmos que eram antes do rompimento. Permanecer�o juntos mas diferentes, ou melhor, diferenciados, ou v�o se separar depois desse esfor�o? Nem o analista pode dizer o que ser�, porque o processo de diferencia��o de cada parceiro muda tudo a respeito do lugar que cada um ocupava antes na parceria e na vida. Com o que se rompe, afinal, em uma separa��o? O que permite e o que faz romper o apego em uma rela��o amorosa?

Estas s�o as perguntas que as personagens de Carmona se esfor�am para formular e responder. A mulher reconhece que precisa de um tempo, pois essas coisas levam tempo, a despeito da pressa que muitos t�m para se verem livres do sofrimento que tudo isso envolve.

Enquanto o homem dirige interroga��es exaltadas e indignadas para o mundo abstrato dos conceitos sobre o amor, talvez na esperan�a de que elas acolham ou deem sentido ao fato de que ele foi deixado, ela, em sua caminhada, logo descobre que a ruptura � em rela��o �s pr�prias fantasias, por exemplo, em rela��o ao que ela idealizava sobre o seu parceiro e sobre si mesma no casamento, mas � tamb�m uma ruptura em rela��o �s posi��es que ocupava na vida. Ela rompe para se encontrar. 

PARCERIA AMOROSA 
A decis�o � expressa na carta escrita a m�o, que abre o romance, e no ato de sair da casa: “Estou indo embora”. Mas ir-se embora envolve a retomada da hist�ria da sua pr�pria vida e o resgate e a ressignifica��o dos elementos que a fizeram ser um certo tipo de sujeito antes, durante, dentro e fora de uma parceria amorosa. 

Os psicanalistas descreveriam esse momento como uma “retifica��o subjetiva”, que � uma tomada de posi��o em rela��o ao pr�prio desejo e em rela��o ao desejo do outro e que envolve a pr�pria responsabiliza��o em cada decis�o que se toma. Evoco, aqui, a reflex�o da escritora e psicanalista L�via Garcia-Roza, quando ela diz: “Na rela��o com o outro, precisamos nos dizer com quais lacunas conseguimos conviver”.

“N�o vamos nos machucar mais”, s�o as palavras que a mulher escreve na carta. Uma decis�o que rompe o pacto que ela e o homem mantinham. Feita a “aut�psia” do relacionamento terminado, o “machucar-se mutuamente” mostra ter sido um elemento chave para que a parceria tivesse se tornado disfuncional. 

DISPOSI��O 
Nesse ponto talvez houvesse lugar para outra interroga��o: “Havia espa�o e disposi��o para o cuidado m�tuo nesse casamento?”. Ou seja, de que modo se fazia o cuidado com o outro? Esse cuidado era reconhecido?

Se Lacan estava certo quando disse que “amar � dar o que n�o se tem”, talvez fosse bom pensar que, na assimetria do amor, quem recebe o que � dado gratuitamente pelo outro deve estar disposto a esbo�ar um gesto de reconhecimento.

Se isso n�o acontece, s�o grandes as chances para o deserto afetivo se instalar. Contudo, aquele que d� o que n�o tem talvez tenha de abrir m�o do desejo de ser reconhecido por aquilo que ofertou. 

Na situa��o tecida em A casa comum, se o homem e a mulher se encontrarem por acaso no momento em que ela voltar para buscar o carro estacionado na porta da casa, talvez nesse mesmo momento, no final da tarde, em que ele sai depois de guardar no bolso o bilhete de despedida amassado, os dois j� n�o ser�o os mesmos que eram antes. Tudo ter� se transformado. Estar�o prontos tanto para se separarem quanto para se reunirem, se de fato agora souberem o que e quem estar�o deixando para tr�s.
 
* Ana Cec�lia Carvalho � escritora e psicanalista. Publicou a Trilogia da Inquietude pela Quixote Do.

A casa comum
Kaio Carmona
Quixote Do (74 p�gs.)
$ 49,90




 









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