
As transforma��es na paisagem urbana de Belo Horizonte – neste ano acentuadas pela pandemia do novo coronav�rus – s�o em certa medida o pr�prio tema do filme, que retrata na cidade sua personagem principal, vista por uma perspectiva labir�ntica.
Marotta conta que o roteiro come�ou a ser escrito em 2012. “Nessa �poca, muitas coisas existiam ali no Baixo Centro de BH, v�rias frentes culturais, movimentos como o Fora Lacerda, Duelo de MCs”, cita.
Nesse est�gio inicial de escrita, “o filme partia do encontro de um jovem casal pertencente a realidades sociais diferentes que se conhece ali. Era isso que queria contar e come�amos a escrever”, diz.
No entanto, “ao longo de quatro anos, ele acaba acompanhando um processo radical de mudan�a da cidade e do Brasil. O que era uma coisa festiva vira morte, esvaziamento, gentrifica��o. Isso que est� no filme, que acompanha esse processo de mudan�a”, afirma o diretor.
Logo em umas das primeiras cenas de Baixo Centro, um casal se encontra num evento de hip-hop, debaixo do viaduto Santa Tereza. S�o eles Robert (Alexandre de Sena) e Teresa (Cris Moreira). Por�m, suas hist�rias e di�logos a partir dali aparecem fragmentados ao longo de uma longa noite, na qual tamb�m participam Gu (Renan Rovida), Luisa (Barbara Colen) e Djamba (Marcelo Souza e Silva). Os personagens compartilham relatos, incertezas, traumas, pensamentos, sem necessariamente se conectar uns com os outros, mas sendo todos coadjuvantes diante de uma BH definida pelos realizadores como “protagonista” da hist�ria.
FRATURA
Ewerton Belico explica que os di�logos e mon�logos vistos em cena s�o “emaranhados de pequenas hist�rias fraturadas e interrompidas, deliberadamente descontextualizados”. Segunda ele, a ideia se associa a uma proposta de atua��o “pr�xima ao transe, ao entorpecimento, ao sonho, ao estado de vig�lia, que remetesse a estados de consci�ncia n�o diurnos e a outras formas de racionalidade”.
Demarcando a proposta de seu filme, ele observa que n�o h� nele “di�logos de laborat�rio de roteiro, onde h� uma funcionalidade estrita para o di�logo”. E n�o h� por que, segundo Belico, “n�o � esse o projeto do filme”. Em sua avalia��o, Baixo Centro “retoma uma experi�ncia rara no cinema brasileiro hoje, na qual os di�logos n�o s� informam ou d�o pistas sobre os acontecimentos, mas traduzem um estado subjetivo dos personagens”.
Embora o palco principal dos acontecimentos do filme seja a regi�o que o nomeia, sobretudo as ruas da Bahia e Aar�o Reis, ele se expande tamb�m por outros territ�rios da cidade, como o Aglomerado da Serra. Contudo, a cidade tamb�m aparece de forma fragmentada.
“Nunca foi nosso interesse filmar pontos conhecidos de BH, porque os elementos que nos interessam n�o se d�o ali. Eles est�o na parede descascada, nos labirintos, nos lugares inacess�veis, onde nem a c�mera de vigil�ncia filma”, diz.
Segundo Belico, “um dos signos mais evidentes desse empreendimento metropolitano � a produ��o cont�nua das ru�nas, da destrui��o, e elas se espalham nessa cartografia que o filme realiza”. Mas a conex�o mostrada entre a regi�o central e outros bairros, em algumas idas e vindas dos personagens, guarda outro significado.
“O filme articula o conjunto de experi�ncias que ligam espa�os que s�o apartados: o das periferias com o do Centro de BH. Nesse sentido, a escolha da noite explicita a devolu��o das ruas do Centro para seus donos, para quem habita o Centro, que � a popula��o mais pobre”, afirma o diretor. “A mudan�a de perspectiva pol�tica do filme � tamb�m uma mudan�a de perspectiva da nossa rela��o com a cidade”, completa.
Mesmo que o roteiro tenha sido escrito h� nove anos, os diretores estabelecem uma rela��o da hist�ria com a pandemia. “� como se nossos personagens desde sempre estivessem em isolamento. A vida no Baixo Centro, como est� retratada, configura o esgar�amento do espa�o p�blico no Brasil, cujo auge � esse isolamento social. No fim das contas, os corpos do Baixo Centro s�o os que continuam na rua, no espa�o p�blico”, avalia Belico.
ALMAS
Samuel Marotta ressalta que “o filme come�a povoado e vai se esvaziando em seu decorrer, at� que, no fim das contas, s� existem almas ali. N�o h� mais encontros, nem pessoas. Hoje, a cada vez que vejo o filme fico assustado com um clima que ronda ali de que algo est� para acontecer. Ele carrega esses elementos, que n�o identificamos (no momento), mas agora talvez saibamos o que era”.
No longo trajeto do filme at� essa estreia nos servi�os de v�deo sob demanda, o audiovisual brasileiro tamb�m sofreu mudan�as, e isso tamb�m est� entrela�ado com o percurso do filme, na opini�o dos diretores.
“Nesse meio do caminho, as vicissitudes da hist�ria brasileira marcam a pr�pria hist�ria do projeto, em mais de um sentido. O filme, de certo modo, � uma manifesta��o de um espanto diante de um processo de destrui��o da cidade e de sua experi�ncia, de ver um sonho, uma imagem de cidade poss�vel, sendo dilacerado, destru�do”, afirma Belico.
Ele aponta que “Baixo Centro � fruto da �ltima edi��o de um edital de cinema hoje extinto, o Filme em Minas, suprimido pelo governo Fernando Pimentel (2015-2018)”. A demora entre a conclus�o do filme e seu encontro com o p�blico “� sintoma do que vem acontecendo nos �ltimos tempos, da paralisa��o da Ag�ncia Nacional do Cinema (Ancine)”, diz Belico.
Mas ele avalia tamb�m que “com o fechamento das salas por causa da pandemia, as plataformas de streaming permitiram ao cinema brasileiro uma sa�da, uma solu��o poss�vel diante de um bloqueio do fomento � distribui��o do cinema nacional”. Em sua avalia��o, “o fosso se ampliou, e o mercado, que j� era concentrado, ficou mais ainda.”
Baixo Centro
Dire��o: Samuel Marotta e Ewerton Belico. Com: Alexandre de Sena, Cris Moreira, Renan Rovida, Barbara Colen e Marcelo Souza e Silva. Dispon�vel a partir desta sexta-feira (13) nas plataformas Looke, Now, Vivo Play, iTunes, Microsoft e Google Play