Estrelado pelo xam� Regis Myrupu, 'A febre' chega ao streaming
Ator ind�gena diz que a cultura de seu povo tem muito a oferecer ao cinema nacional. Premiado internacionalmente, longa est� no Net Now, Oi Play e Vivo Play
Regis Myrupu comemora o pr�mio de Melhor ator do Festival de Locarno, em 2019, na Su��a (foto: FESTIVAL DE LOCARNO/DIVULGA��O)
Depois de ganhar o pr�mio de melhor atua��o masculina no festival su��o de Locarno, em agosto de 2019, logo em sua estreia no cinema, a vida de Regis Myrupu, protagonista do filme
A febre, poderia ter mudado. Ele garante que n�o. Por�m, a proje��o conquistada em outros festivais internacionais, como o franc�s Biarritz, foi refor�ada recentemente. No �ltimo dia 12, o longa estreou nas salas de algumas cidades brasileiras, al�m de entrar para o cat�logo dos servi�os de streaming Net Now, Oi Play e Vivo Play.
Com isso, mais gente pode conhecer a hist�ria do personagem Justino, at� agora restrita a eventos voltados para cin�filos. Descendente da etnia desana, ele trabalha no porto de Manaus e tenta conciliar a vida na metr�pole com as tradi��es culturais de sua fam�lia ind�gena. Uma febre misteriosa o leva de volta � aldeia de onde saiu h� v�rios anos.
“N�o vejo grande mudan�a na minha vida depois do filme. Continuo fazendo o que fazia antes: um pouco na floresta a� no Brasil, um pouco aqui na It�lia. Continuo trabalhando com a minha cultura, ent�o n�o vejo uma mudan�a extraordin�ria”, diz Myrupu, em entrevista por telefone. No momento, ele est� na �mbria com a companheira italiana Romina, que conheceu no Brasil em 2013, e a filha Yusi� Celeste, de 1 ano e cinco meses.
Myrupu n�o participou de outro filme, embora tenha recebido convites e feito testes de elenco. A import�ncia da sua representatividade, tanto no longa dirigido por Maya Da-Rin quanto na vida real, fortalece-se nestes tempos complicados.
FLORESTA
Filho, neto e herdeiro do conhecimento espiritual de gera��es de xam�s, Regis Myrupu se tornou um dos rar�ssimos ind�genas protagonistas do cinema brasileiro. Enquanto A febre roda o mundo conquistando plateias e cr�ticos, a Floresta Amaz�nica, onde ele nasceu, arde em inc�ndios, registrando o maior patamar de desmatamento em uma d�cada, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“Esse lado � muito triste e aqui fora d� vergonha. Todos perguntam sobre as queimadas, se � verdadeiro ou mentira. As pessoas aqui sabem que � verdade. N�o � uma coisa acidental, n�o � algo que se faz por necessidade de plantio, � apenas ambi��o e gan�ncia”, afirma.
Myrupu questiona o desempenho das autoridades brasileiras. “Infelizmente, n�o temos um representante no Brasil. � o que falo para eles aqui: estamos � deriva”, adverte, relatando a decep��o dos estrangeiros com quem conversa sobre a situa��o ambiental do pa�s.
“Somos vistos como burros, incapazes. Temos de pegar um espelho e ver. Fazer uma reflex�o, n�s mesmos, para termos a capacidade de escolher um representante de verdade, uma pessoa que tenha cabe�a bem instru�da, inteligente, com aquela seguran�a e capacidade, que se preocupe com todos os lados, no sentido da popula��o e da natureza”, defende.
Assim como o Justino de A febre, Regis Myrupu traz a sabedoria sobre a natureza herdada dos ancestrais. “Sou ind�gena e nasci na linha de conhecedores xam�s. Meu pai foi paj�, meu av�, meu bisav� e o trisav� tamb�m. Esse conhecimento foi passado sempre de forma oral, sem precisar de papel ou caneta. Ent�o, isso (a destrui��o da floresta) � muito triste para uma pessoa que vive com a natureza de forma muito intensa”, comenta.
“Esses seres de que a cultura n�o ind�gena fala, de natureza morta, de fen�menos da natureza, tudo o que voc�s falam, �rvore, peixe, tudo, s�o seres vivos. Nesse espa�o, tudo se move”, ensina Regis. Para ele, o mundo se divide em tribos diferentes. “Seres das �rvores, ou seja, tribos das �rvores, tribos das pedras, tribos dos peixes. Eles t�m duas formas de apar�ncia: uma de pessoa, uma de animal. A espiritualidade � muito forte. Ent�o, quando atrav�s da nossa ambi��o a gente destr�i e queima uma floresta, a gente n�o est� matando s� a �rvore, mas uma comunidade de seres, que choram como n�s.”
O xam� adverte: “N�s acreditamos s� naquilo que vemos e tocamos. O mundo n�o � feito s� daquilo que a gente toca. � feito de coisa vis�vel, invis�vel, tem um lado espiritual, f�sico, ps�quico, emocional. O mundo � feito dessa forma. N�s precisamos ter essa consci�ncia.”
Ind�genas interpretando ind�genas: Regis Myrupu e Rosa Peixoto vivem pai e filha em A febre (foto: Barbara Alvarez/Tamandu� Vermelho)
TARZAN
Nascido em uma tribo desana de Pari Cachoeira, no Alto Rio Negro, no Amazonas, perto da fronteira com a Col�mbia, Regis acumula viv�ncias que v�o muito al�m da floresta. Ainda jovem, deixou a aldeia, onde se lembra de ter assistido pela primeira vez a um filme: Tarzan, projetado em um len�ol por mission�rios.
Pela tradi��o desana, depois de deixar a aldeia, ningu�m pode voltar para morar ali novamente, apenas para visitar. Com o pai, Regis conheceu v�rios locais e viveu em Barcelos, munic�pio pr�ximo da divisa com Roraima. L�, ele e a fam�lia se divertiam com telenovelas. Era at� poss�vel ver filmes na TV, embora fosse complicado chegar ao fim, pois a energia el�trica era ligada �s 18h e cortada �s 22h.
A admira��o de Myrupu pelo audiovisual se transformou em pertencimento na comunidade Praia do Tup�, a 25 quil�metros de Manaus, onde ele foi morar em 2002. O primeiro contato com a c�mera veio por meio do turismo, quando eram filmadas dan�as da tradi��o ind�gena para exibi��o aosvisitantes.
Anos mais tarde, seu caminho se cruzaria com o da cineasta carioca Maya Da-Rin. Depois de filmar document�rios na Amaz�nia, ela planejava rodar seu primeiro longa de fic��o, cujo papel principal acabou com Regis.
“Passei um ano fazendo pesquisa de elenco com os colaboradores, que me ajudaram muito. Conversei com 500 pessoas de diferentes comunidades at� encontrar o Regis Myrupu. No momento em que conversamos, percebi que ele trazia muito do que eu pensava para Justino. O Regis tem presen�a muito forte, com olhar muito forte, um olhar corporal muito preciso nos gestos e movimentos. Isso vem da trajet�ria pessoal de vida dele”, conta a diretora de A febre.
Aquele ator se encaixava perfeitamente na proposta da cineasta. Maya pretendia contar uma hist�ria sobre o movimento de quem migra para viver na metr�pole, “mostrando como as rela��es familiares, pessoais e com o espa�o da cidade afetam a vida das pessoas”.
CONTRASTES
A cineasta queria, sobretudo, fazer um filme sobre como uma fam�lia ind�gena vive em Manaus, “cidade muito espec�fica pelos contrastes da presen�a industrial e da floresta”. Sua proposta era oferecer um olhar especial: “O ponto de vista dos personagens, dos protagonistas, do mundo interior deles, do que os move nesse deslocamento da terra de origem para viver em um outro lugar, com formas de organiza��o distintas.”.
Al�m de Regis Myrupu, o elenco conta com a ind�gena Rosa Peixoto, no papel de Vanessa. Filha de Justino, ela trabalha em uma unidade de atendimento de sa�de e acaba de ser aprovada para estudar medicina em Bras�lia.
Vanessa enfrenta dilemas que envolvem a mudan�a para a capital federal, onde viver� longe da fam�lia, mas sem deixar de preservar as tradi��es ind�genas. Uma delas � a l�ngua, pois boa parte do filme � falado em tukano. Essa op��o de Maya deixou os atores novatos ainda mais � vontade nas cenas, al�m de trazer importante perspectiva para A febre.
“Isso � muito saud�vel para a arte. Pensar que temos 200 l�nguas no territ�rio brasileiro e dificilmente escutamos uma que n�o seja portugu�s. Temos forte tradi��o de artistas ind�genas trazendo essa possibilidade, que nos d� acesso a entendimentos diferentes e a outras percep��es pol�ticas e culturais”, observa a diretora. De acordo com ela, A febre � fruto da produ��o cultural �nd�gena pulsante, que nem sempre tem a visibilidade merecida.
“Na realidade ind�gena, as quest�es n�o se reduzem a um tema. Isso acaba recorrente em produ��es n�o ind�genas sobre universos ind�genas, que quase sempre tematizam, colocando as produ��es em um certo nicho. Isso acaba limitando muito o acesso a elas”, diz a cineasta.
Maya define seu longa n�o como filme etnol�gico, mas “fic��o sobre uma fam�lia desana que lida com uma s�rie de quest�es e cruzamentos que s�o parte de todas as culturas”. A diretora carioca espera ver mais produ��es com personagens ind�genas interpretados por artistas ind�genas.
Nesse sentido, Regis Myrupu � uma grande inspira��o. Depois do filme, ele foi procurado por muitas pessoas de origem ind�gena que revelaram o interesse em atuar e participar de filmes como A febre.
“Se roteiristas e produtores do audiovisual dessem mais import�ncia � cultura ind�gena, explorariam muitos conte�dos bons, que fariam a sociedade nos ver de outras perspectivas”, afirma Myrupu. A febre ganhou o pr�mio de Melhor filme em festivais na China, Argentina, Portugal, Estados Unidos, Uruguai, Chile, Peru, Alemanha e Espanha.
Orgulhoso do filme, ele comenta que esse sucesso se deve a n�o apenas ter ind�genas nos pap�is principais, mas ao fato de mostrar a diversidade. “S�o ind�genas protagonizando e falando a pr�pria hist�ria, sobre o que est� acontecendo. O ind�gena pode ingressar em qualquer tipo de trabalho, participar de filme, estudar medicina ou trabalhar em um escrit�rio”, conclui o premiado ator.
A FEBRE
Dire��o de Maya Da-Rin. Com Regis Myrupu, Rosa Peixoto, Suzy Lopes, Johnatan Sodr� e Kaiaro Jussara Brito. Dispon�vel nas plataformas de streaming Net Now, Oi Play e Vivo Play.