Livro disseca jeito brasileiro do 'manda quem pode, obedece quem tem ju�zo'

Em sua longa e prol�fica carreira acad�mica, o antrop�logo Roberto DaMatta, de 84 anos, viveu nos Estados Unidos, primeiramente como aluno (Universidade de Harvard) e depois como professor da Universidade de Notre Dame. Em um aeroporto daquele pa�s, presenciou a seguinte situa��o: “Um voo foi suspenso, a funcion�ria anuncia o ocorrido, os passageiros v�o para uma fila e um deles, muito nervoso, fala para ela: ‘Tenho que voar agora’. Ela responde que n�o tinha voo e ele diz: ‘Voc� sabe com quem est� falando?’. A mo�a pega o microfone e diz: ‘Tem um FDP aqui que n�o sabe quem ele �’.”

O caso, contado de forma jocosa por DaMatta, revela muito sobre os envolvidos e tamb�m sobre o lugar em que estavam. Em 1979, o antrop�logo lan�ou Carnavais, malandros e her�is, livro hoje considerado um cl�ssico. “Fui o primeiro a interpretar o ‘voc� sabe com quem est� falando?’, coisa que nenhum soci�logo falou. E aprendi a dist�ncia, nos EUA”, afirma, referindo-se ao cap�tulo da obra em que disseca a “carteirada”.

Rec�m-lan�ado, Voc� sabe com quem est� falando? (Rocco) re�ne tr�s ensaios que tra�am um estudo sobre o autoritarismo brasileiro. O primeiro deles foi tirado da obra de quatro d�cadas atr�s, revisado e atualizado para o novo livro. O conceito (infelizmente) se mant�m na atualidade. O Brasil da pandemia assistiu a desembargador humilhando guarda municipal, “engenheiro civil formado” espinafrando fiscal da prefeitura. Ao ir a fundo em aspectos negativos da identidade nacional – a malandragem e o “jeitinho brasileiro” –, o autor busca repensar o pa�s.

“O regime democr�tico no Brasil � trepidante. Depois da Primeira Rep�blica (1889-1930), veio a Ditadura Vargas (1937-1945), mais tarde o Vargas voltou... Como uma sociedade que tem o cora��o hierarquizado d� oportunidade a todos, se as oportunidades nos sistemas tradicionais j� est�o estabelecidas, se h� dinastias pol�ticas? Nossa forma��o � aristocr�tica, do manda quem pode, obedece quem tem ju�zo. Somos uma economia que durante cinco s�culos foi baseada no trabalho escravo, o que criou grada��es entre as pessoas”, afirma DaMatta.

Para o antrop�logo, a pandemia s� fez aumentar “o nervosismo da fila”. “Ela obrigou as pessoas a usar m�scara. O mundo p�blico ficou complicado, pois quem era importante antes n�o entrava na fila. Somos uma sociedade marcada pela escravid�o, em que sempre tem algu�m que vai fazer algo por voc�. Agora, muitos colegas estranharam porque tiveram que lavar prato”, continua.

Sobre os acontecimentos recentes nos EUA, com a invas�o do Capit�lio na �ltima semana por extremistas trumpistas, DaMatta comenta: “� um fato inusitado na hist�ria de um pa�s que tem dois s�culos e meio que funciona da mesma maneira. Nunca houve ditador americano. Tem regimes que v�o mais para o lado de quem � rico, outros mais para a classe m�dia, mas o que chama a aten��o � justamente o equil�brio.”

Para DaMatta, mais chocante do que a invas�o � o papel do mandat�rio daquele pa�s. “Nas elei��es, quando as regras do jogo est�o se definindo, aparece um presidente para torpede�-las. Como � que um presidente americano reverteu as obriga��es de um presidente, que s�o justamente equilibrar? O Trump � o ‘voc� sabe com quem est� falando’ em uma sociedade que sabe quem est� falando.”

A despeito das dificuldades, o antrop�logo acredita que o Brasil vem mudando. “Cabe a n�s aproveitarmos as brechas da transforma��o para melhorar. H� os problemas do governo federal, mas assim como o Trump, o Bolsonaro falhou tamb�m. Quando ele diz que o Brasil est� quebrado, isso significa que ele, Bolsonaro, est� quebrado. � ele quem n�o se deixa fazer nada, que se bloqueia. � uma luta dele contra ele mesmo.”

De Roberto DaMatta

Rocco

208 p�ginas

R$ 39,90 (livro) e R$ 25,90 (e-book)