
“Fui eu que escrevi isto tudo?” Em agosto, �s v�speras do lan�amento de Batendo pasto, a poeta mineira Maria L�cia Alvim conversou com o Estado de Minas. Disse que o livro havia impressionado a ela mesma. Os escritos que estavam vindo a p�blico eram de quase 40 anos atr�s.
Estava com 87 anos, vivia em Juiz de Fora e assistia, de longe, � publica��o da obra. Na tarde de quarta-feira (3/2), Maria L�cia sucumbiu � COVID-19, aos 88, completados em 4 de outubro. Por causa de dois poetas – Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores, que descobriram n�o s� sua obra, mas a encontraram vivendo em uma resid�ncia para idosos – o livro foi publicado pela editora belo-horizontina Relic�rio. Maria L�cia chegou a receber um exemplar. “Ficou muito emocionada”, contou sua cuidadora, Luciana de Oliveira Dias.
Maria L�cia vivia na Resid�ncia Vila Verde, em Juiz de Fora. Estava internada desde 18 de janeiro no hospital Albert Sabin. Seu corpo ser� cremado.
FAZENDA
Nascida em Arax�, viveu principalmente entre o Rio de Janeiro e a fazenda da fam�lia na Zona da Mata mineira. Desde 2011 residia em Juiz de Fora. Irm� dos poetas Maria �ngela Alvim e Chico Alvim, estreou em 1959 com o livro XX Sonetos, pelo qual recebeu o pr�mio da Gazeta de Not�cias, um dos principais da �poca.
Maria L�cia publicou tamb�m Cora��o inc�lume (1968), Pose (1968), Romanceiro de Dona Beja (1979) e A rosa malvada (1980). Lan�ou ainda Vivenda (1989), que re�ne 30 anos de sua produ��o po�tica. A partir da d�cada de 1990, por�m, a autora se recolheu e parou de publicar.
Batendo pasto estava sob a guarda do poeta Paulo Henriques Britto. “Conheci Maria L�cia numa leitura de poemas dos anos 1980, quando isso virou moda nos restaurantes do Rio. Ficamos amigos. Depois, quando ela j� estava morando em Minas, veio ao Rio e me disse que tinha um livro prontinho, me pedindo para escrever a apresenta��o. Veio com a hist�ria de que queria que fosse publicado logo que morresse. E ainda queria que os originais ficassem comigo. Eu disse que ficaria com a c�pia, a duras penas a convenci a tirar o xerox”, contou Britto ao EM, em agosto de 2020.
Conforme o pedido da autora, o livro permaneceu na gaveta de Britto at� ele contar a hist�ria a Domeneck. A edi��o publicada est� tal e qual Maria L�cia a concebeu (s� foram feitas atualiza��es ortogr�ficas), inclusive com o texto de Britto, que tamb�m assina a orelha.
A Relic�rio realizou no segundo semestre de 2020 um evento virtual para o lan�amento de Batendo pasto, com a participa��o de Domeneck, Gontijo Flores, Britto e Juliana Veloso Mendes, que em 2015 defendeu pela UFMG a disserta��o “A narrativa hist�rica na poesia de Maria L�cia Alvim: Romanceiro de Dona Beja”.
MISS�O
A qualidade liter�ria da po�tica de Maria L�cia foi atestada por seus pares. Sua perda, tamb�m. “Diz-se no interior do pa�s, quando morre algu�m que fez tanto, teve uma longa vida, que a pessoa 'cumpriu sua miss�o'. Faz parte do nosso vocabul�rio do consolo para o inconsol�vel, como o 'n�o morreu, descansou', ou o eufemismo bebedourense, onde n�o se diz que algu�m morreu, mas que 'desceu a Rua Campos Salles', ao final da qual est� o cemit�rio da cidade. Mas Maria L�cia Alvim n�o merecia morrer dessa forma, lutando por oxig�nio, brigando para respirar, isolada, sozinha. Maldito v�rus, maldito governo incompetente”, escreveu Domeneck nas redes sociais.
Na mesma publica��o, Domeneck reproduziu um dos poemas que comp�em Batendo pasto, intitulado Aquele que um dia far� o meu caix�o, publicado nesta p�gina.
AQUELE QUE UM DIA
FAR� O MEU CAIX�O
Maria L�cia Alvim
Aquele que um dia far� o meu caix�o
de antem�o tem as medidas:
menina-carapina
surrupiando
Viu crescer, prometer, viu sazonar.
Quando o roxo dos ip�s configurou-se
no horizonte
aquele que far� o meu caix�o
numa cestinha dep�s amor
e morte
Lasca por lasca
fava por fava
fui pedindo, fui rasgando, fui doando
l�bulo mindinho
esses rajados de pele, esses crestados
o estalido da cabi�na
O galo alvorescente
dourou