
“� a COVID, mas n�o s�”, admite o cineasta nova-iorquino, de 81 anos. Ele prepara mais um livro: “But what I really wanna do is direct” (“Mas o que eu realmente quero fazer � ser sincero”, em livre tradu��o), uma esp�cie de di�rio com cita��es e anota��es de sua carreira. Ali�s, uma das carreiras de maior prest�gio da chamada Nova Hollywood (ou Gera��o Easy Rider), ao lado de diretores que mudaram a maneira de se filmar nos EUA, entre 1967 e 1981, a partir do engajamento social, da cartografia das desilus�es inerentes ao sonho americano e da ruptura com os ditames dos est�dios.
Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Elaine May e Steven Spielberg redefiniram a hist�ria, num casamento feliz (e raro) entre autoralidade e sucessos de bilheteria em s�rie. Bogdanovich contribuiu com “Essa pequena � uma parada” (1972) e “Lua de papel” (1973). Mas foi “A �ltima sess�o de cinema”, o drama em preto e branco sobre a perda da inoc�ncia da juventude do Texas, em 1951, tendo uma velha sala de proje��o como ponto de encontro, que mais lhe deu proje��o na ind�stria. Dois Oscars de melhor coadjuvante, dados a Cloris Leachman e Ben Johnson (numa atua��o antol�gica), imortalizaram o longa, que aniversaria agora, inspirando o debate que Bogdanovich considera doloroso (ou quase terminal) sobre o futuro da arte cinematogr�fica.
"Me parece perigoso que as nov�ssimas gera��es est�o descobrindo o cinema em plataformas digitais, nas quais a experi�ncia de ver filmes � completamente diferente, feita em casa"
Qual � a sua maior preocupa��o em rela��o �s finan�as dos cinemas ao fim da pandemia?
Tenho um filme para dirigir ainda este ano, chamado “One lucky moon”, com�dia ambientada em parque tem�tico do Velho Oeste. Ele acabou adiado, pois tudo parou em Los Angeles, com o coronav�rus, e pessoas da minha idade precisam ficar em casa. Mas o que me parece perigoso � que as nov�ssimas gera��es est�o descobrindo o cinema em plataformas digitais, nas quais a experi�ncia de ver filmes � completamente diferente, feita em casa. Voc� n�o precisa ir a um lugar, pagar ingresso. Isso pode amea�ar o futuro do circuito, somando-se ao fato de que mais ningu�m parece se interessar pelos cl�ssicos, por Howard Hawks, por John Ford, diretores cuja obra exige a for�a da tela grande.
Mas o senhor ainda parece fiel a esse passado, tendo participado do resgate recente de “O outro lado do vento”, de Orson Welles, e dirigido um document�rio sobre Buster Keaton, “The great Buster”. O senhor n�o acha que o streaming pode ajudar a reviver essas lendas do passado do cinema?
Claro que pode, at� porque os streamings t�m muita coisa boa em sua programa��o. Mas eles n�o s�o cinema. � o mesmo quando me perguntam sobre as s�ries: 'As s�ries s�o boas? S�o importantes?' Caramba, eu fiz “Fam�lia Soprano”. Claro que elas t�m coisas boas. Eu mesmo teria interesse em fazer mais uma. Mas n�o � cinema. Cinema � algo que depende de uma plateia. Uma plateia que se deixe comover.
Da mesma maneira como parte do p�blico se comoveu com seu “A �ltima sess�o de cinema”, h� cinco d�cadas?
Aquele filme mudou a minha vida, porque me deu a chance de ser algu�m que as pessoas queriam escutar na ind�stria. Nunca penso no cinema dos anos 1970, nos EUA, como movimento ou revolu��o. Foi apenas uma troca de turno, uma passagem de bast�o. Eu n�o andava com aquela turma, pois estava preocupado em entrevistar os velhos, os diretores dos anos 1930, 1940 e 1950 que estavam vivos, mas come�avam a ser esquecidos. Queria filmar o meu tempo fiel ao passado. Ben Johnson, por exemplo, n�o queria fazer o filme.
Ele recebeu meu roteiro e reclamou do excesso de pala- vras. Era um ator que gostava da a��o f�sica e n�o de falar, n�o de tramas palavrosas. Precisei pedir ajuda a John Ford, que entrevistei na �poca. Ele procurou Ben Johnson e disse: 'Voc� quer passar a vida toda sendo o ‘escada’ de John Wayne? Ent�o, fa�a o filme do garoto'. E ele fez. Eu disse a ele: 'Ben, se voc� fizer o papel de Sam the Lion, vai ganhar o Oscar'. N�o deu outra.
Ele recebeu meu roteiro e reclamou do excesso de pala- vras. Era um ator que gostava da a��o f�sica e n�o de falar, n�o de tramas palavrosas. Precisei pedir ajuda a John Ford, que entrevistei na �poca. Ele procurou Ben Johnson e disse: 'Voc� quer passar a vida toda sendo o ‘escada’ de John Wayne? Ent�o, fa�a o filme do garoto'. E ele fez. Eu disse a ele: 'Ben, se voc� fizer o papel de Sam the Lion, vai ganhar o Oscar'. N�o deu outra.
Qual � o maior legado da gera��o dos anos 1970?
O realismo. O cinema, com a gente, atenuou seu escapismo por um tempo. Mas a principal mudan�a foi estrutural. Os est�dios existiam para fabricar astros e estrelas. A gente apareceu para fabricar filmes. Antes da gente, as pessoas iam ver James Cagney, Humphrey Bogart. Conosco, a plateia ia ver “Lua de papel”.
O que esperar de seu livro “Five american icons”?
Muitas hist�rias que colhi ao longo de muitas entrevistas. O cinema anda em crise, mas as lendas o alimentam.

Retrato melanc�lico da Am�rica
H� cenas de filmes que deixam marcas profundas na alma do espectador – n�o apenas as cl�ssicas, como o assassinato no chuveiro em “Psicose” ou a porta que se abre no in�cio e se fecha no final de “Rastros de �dio”. Mas imagens menores, que despertam uma certa melancolia e ficam guardadas na mem�ria.
� o que acontece, por exemplo, no delicado “Houve uma vez, um ver�o” (1971), de Robert Mulligan, sobre a descoberta do amor por um adolescente, durante a Segunda Guerra. A trilha de Michel Legrand emoldura momentos de rara beleza, que culminam com a voz do narrador dizendo que nunca houve um ver�o como aquele.
AMOR
Do mesmo ano � “A �ltima sess�o de cinema”, de Peter Bogdanovich, uma sincera declara��o de amor ao cinema, ao mesmo tempo em que exibe um retrato melanc�lico do american way of life, que ent�o agonizava, filme inspirado no romance de Larry McMurtry.
Em um lugarejo do Texas nos anos 1950, o �nico cinema da regi�o vai exibir sua �ltima sess�o antes de fechar. Ao mesmo tempo, um grupo de jovens da cidade, interpretados por Jeff Bridges, Timothy Bottoms, Cybill Shepherd e Randy Quaid, vive desilus�es amorosas e ideol�gicas.
A televis�o j� atrai mais o p�blico. E o derradeiro filme � um western cl�ssico, “Rio Vermelho”, de Howard Hawks, com John Wayne. O filme dentro do filme � um �pico, mas, no de Bogdanovich, a pr�pria Am�rica parece estar morrendo. S�o pequenas vidas � deriva, sem perspectivas, que se misturam ao vento que leva o p� das ruas vazias.
Rodado em bel�ssimo preto e branco, o que carrega o tom de nostalgia, “A �ltima sess�o de cinema” estabeleceu em definitivo a reputa��o de Bogdanovich como grande diretor, al�m de garantir o Oscar de coadjuvante para Cloris Leachman (recentemente falecida) e Ben Johnson.
A cena final resume a melancolia ao mostrar a mulher passando a m�o na cabe�a do rapaz, o vento soprando, a cidade deserta, e ela repetindo: “Est� tudo bem agora. Est� tudo bem agora”.
Sucesso de cr�tica, “A �ltima sess�o de cinema” foi o �nico filme de nota na carreira de Bogdanovich (talvez valha lembrar tamb�m de “Lua de papel”). No entanto, o diretor se tornou um importante documentarista da chamada Idade de Ouro do cinema norte-americano.
Nos anos 1960 e 1970, quando grandes cineastas viviam um ocaso, esquecidos por p�blico e cr�tica, Bogdanovich foi atr�s dos principais, entrevistando-os para document�rios que hoje se tornaram cl�ssicos e imprescind�veis.
CORTA!
Uma das cenas se tornou ic�nica: Bogdanovich, ent�o um iniciante promissor, entrevista John Ford, �cone do cinema dos EUA, perguntando-lhe sobre influ�ncias psicol�gicas na constru��o de personagens masculinos em seus faroestes. Impass�vel, Ford, que j� era obrigado a usar tapa-olho por causa da cegueira progressiva, apenas respondeu, secamente: “Corta!”.
Mais que o inusitado da resposta (Ford fazia quest�o de revelar seu mau humor com perguntas), a cena demonstrava Bogdanovich em a��o, algo significativo. Enquanto na �poca os cr�ticos americanos endeusavam cineastas europeus, como Godard e Antonioni, ele, gravador em punho, buscava os velhos mestres, como Ford, Howard Hawks e Alfred Hitchcock, que praticamente desenvolveram quase tudo da linguagem cinematogr�fica.