Impulsionado pela obra-prima de Cervantes, Salman Rushdie lan�a 'Quichotte'
Novo livro do escritor brit�nico usa a s�tira para desbravar pa�s � beira do colapso moral e espiritual
04/05/2021 04:00
-
atualizado 04/05/2021 07:34
compartilhe
Salman Rushdie afirma que quis se divertir com ''Quichotte'', mas que, nas entrelinhas, mostra o quanto � perigoso quando uma sociedade come�a a acreditar que coisas falsas s�o reais (foto: JOEL SAGET/AFP)
"Preciso sair da cidade grande e escrever um romance panor�mico, que atravesse o pa�s", pensava o escritor brit�nico (de origem indiana) Salman Rushdie, depois de publicar duas obras ambientadas em Nova York. O clique veio quando foi convidado a escrever sobre “Dom Quixote”, a obra-prima de Miguel de Cervantes, t�tulo fundamental da literatura ocidental. Assim nasceu “Quichotte”, s�tira na qual os personagens desbravam o interior dos EUA, um pa�s � beira do colapso moral e espiritual.
O romance, que agora ganha tradu��o pela Companhia das Letras, foi escrito durante o governo de Donald Trump, o que influenciou decisivamente a escolha de temas urgentes, como a defesa da miscigena��o. Inspirado na trajet�ria de Quixote, o cavaleiro errante, a trama de Rushdie acompanha um med�ocre autor de romances policiais, Sam DuChamp, que cria Quichotte, um caixeiro-viajante de origem indiana e fissurado por programas de TV, notadamente reality shows – no original de Cervantes, o her�i � obcecado por romances her�ldicos.
Convencido de que � um habitante "daquele outro mundo, muito mais radiante", Quichotte parte em peregrina��o em busca da mulher amada (Salma, bela apresentadora de TV), acompanhado do filho (imagin�rio), Sancho. Ao longo da narrativa, Rushdie cruza a trajet�ria de DuChamp com seu personagem, ambos em busca do amor, o que resulta em uma escrita divertida, em que o leitor nem sempre consegue discernir o que � fato e o que � fic��o. Aos 73 anos, Rushdie vive h� 21 nos EUA com certa tranquilidade, diferente dos anos 1990 quando foi obrigado a morar recluso em Londres, depois que o governo do Ir� o condenou � morte por blasf�mia, pelo livro “Versos sat�nicos”. Ele falou � reportagem pelo Zoom.
''Quando se come�a a acreditar que coisas falsas s�o reais, � um tipo de loucura. Acho que tamb�m acontece no Brasil, mas os Estados Unidos t�m vivido essa loucura por muitos anos''
Salman Rushdie
Por que “Quichotte” � incrivelmente otimista?
H� algumas raz�es. Uma delas � que o contraste � quase um otimismo tolo, justamente em uma sociedade que n�o est� em seu momento mais otimista. Eu me lembro de “C�ndido”, de Voltaire, cujo subt�tulo � "otimismo". O livro � sobre um outro tipo de inocente, em um mundo culpado. Tamb�m penso sobre isso, � pessoal. Quem me conhece tira sarro por eu ser otimista demais. Ent�o, acreditei que poderia pegar essa caracter�stica pessoal, de certa forma ampli�-la e torn�-la mais l�dica.
Quichotte � fissurado por assistir � televis�o. Ser�amos, ent�o, todos Quichotte?
N�o � apenas a TV em geral, mas especificamente o reality show que n�o retrata a realidade por ser muito falso e massificado. E quando se come�a a acreditar que coisas falsas s�o reais, � um tipo de loucura. Acho que tamb�m acontece no Brasil, mas os Estados Unidos t�m vivido essa loucura por muitos anos, o que � inacreditavelmente prejudicial. Cervantes se firmou com a loucura de seus personagens, mas tinha prop�sitos s�rios sobre isso. E senti quase a mesma coisa. Queria me divertir com o livro, mas, nas entrelinhas, pretendia mostrar que � realmente perigoso quando uma sociedade perde a habilidade de distinguir entre verdade ou mentira.
Parece que escrever esse livro se tornou um exerc�cio divertido...
Sim, tornou-se divertido. Na verdade, demorei para entender como fazer, como seria. E, para mim, a quest�o da voz tonal � sempre muito crucial. Preciso entender exatamente que linguagem o livro vai usar. E, uma vez compreendida, o processo come�a. � um livro um tanto prazeroso, espero. E tamb�m me permitiu prestar minhas homenagens a muitas formas de literatura. H� alguns tipos de pequenas refer�ncias ao (dramaturgo romeno Eug�ne) Ionesco e a outros tantos escritores. Foi divertido, pois nunca havia feito isso t�o abertamente. Foi tamb�m algo assustador, que percebi logo ao introduzir a segunda linha narrativa – eu tinha no��o do que deveria acontecer no livro, gradualmente as linhas narrativas deveriam se juntar e, ao final, eu queria que o leitor pensasse: "OK, � uma �nica hist�ria e tem sido assim o tempo todo… n�o s�o duas hist�rias diferentes". Durante a maior parte do tempo, eu n�o sabia como fazer isso. Era preciso, mas estava com muitas d�vidas. Finalmente – quero evitar spoiler –, pensei: "ah, entendi! O caminho � esse", o que foi um momento muito empolgante. Esse livro se revelou para mim gradualmente. Escrev�-lo foi como um processo de descobri-lo.
Como � poss�vel utilizar a fic��o como um modo de tentar entender o momento presente?
Acho que essa � apenas a forma como meu c�rebro funciona, sabe? Vivo rodeado de livros, que se tornam parte da minha forma de entender o mundo. Espero que isso seja algo que os livros possam fazer pelos leitores hoje, que se tornem uma parte da explica��o. Se leio Kafka, entendo algo sobre o mundo moderno. Senti o mesmo a respeito de Cervantes. Em 2016, houve o duplo anivers�rio de 400 anos de morte de Cervantes e Shakespeare, e fui convidado a escrever algo sobre. Naquele momento, eu j� pensava sobre esse livro, mas n�o havia qualquer tipo de elemento quixotesco, seria simplesmente um romance sobre viagem pela Am�rica, como um romance de estrada. Ent�o, quando reli romances de Cervantes depois de muito tempo, pensei: "� exatamente isso que preciso para fazer sentido com o que estou tentando criar". Ent�o, foi apenas um feliz acidente, n�o estava planejando o livro por causa de Cervantes.
H� um momento no livro em que o senhor diz que humanos preferem fic��o a fatos. Qual � seu sentimento sobre isso?
Bem, apenas acho que as pessoas amam hist�rias. E isso acontece desde muito cedo, crian�as amam hist�rias. E quer saber? As melhores hist�rias s�o as inventadas. Aprendemos muito rapidamente, descobrimos por meio de livros e de nossos pais e m�es nos contando hist�rias que as tramas fant�sticas s�o mais interessantes que as noticiadas por jornais e TV. Existe um desejo genu�no por hist�rias nos seres humanos. Fui um grande leitor em minha inf�ncia, vivia com o nariz enfiado no livro – sem jogar futebol, mas lendo. Espero que exista gente suficiente por a� que concorde. Suspeito que sim, do contr�rio as pessoas n�o comprariam romances e, felizmente, elas compram.
''O livro � sobre um outro tipo de inocente, em um mundo culpado. Tamb�m penso sobre isso, � pessoal. Quem me conhece tira sarro por eu ser otimista demais''
Salman Rushdie
No livro, o senhor faz alus�o �s m�dias sociais ao dizer que a vida se tornou uma s�rie de fotos evanescentes publicadas todos os dias. Como v� o comportamento dessa gera��o?
Eu me preocupo com isso. � como ter uma cultura que n�o tem hist�ria. As imagens de hoje ter�o desaparecido amanh�. Com isso n�o se tem mem�ria de si mesmo, n�o h� como olhar para tr�s e entender seu desenvolvimento. Mesmo antes da inven��o de coisas como Snapchat, eu j� acreditava que vivemos em uma cultura sem mem�ria. As pessoas n�o lembram de coisas de cinco minutos atr�s. Esse � o verdadeiro problema. No meu entendimento, a hist�ria, a compreens�o do passado � um jeito incr�vel de entender os motivos que nos levaram a chegar at� aqui. Ent�o, viver em um mundo em que � f�cil se esquecer o ontem preserva um tipo de inoc�ncia intermin�vel, porque voc� nunca precisa saber coisa alguma sobre voc� mesmo ou sobre os outros, exceto o que te contam nesse momento especificamente. H� um grave problema a�. Eu acredito em continuidade. Como escritor, textos muito antigos sempre foram inspiradores. Retorno sempre aos cl�ssicos indianos, gregos, etc. S�o um tipo de mem�ria da imagina��o humana. Ent�o, eu me preocupo com a cria��o de um ambiente completamente transit�rio, onde nada permanece, tudo desaparece. Isso torna mais simples as vidas das pessoas, o que nem sempre � bom.
Tem sido dif�cil escrever desde o in�cio do isolamento?
Sim. Durante algum tempo, n�o pude fazer nada interessante. Tentei dois projetos diferentes e os abandonei – apenas pensei que n�o eram reais, n�o eram bons. E foi assim por um bom tempo. S� nos �ltimos seis meses � que consegui retomar e come�ar um novo livro. Ainda assim, acredito que escrever tem sido muito mais lento que antes. Tenho escrito apenas metade do que costumo escrever. Acho que todos estamos sendo…como eu diria... t�o distra�dos por essa trag�dia, e parece que, quando a escala da calamidade � t�o grande, tudo o que se pode fazer � prestar aten��o, e n�o �, de fato, um tempo para desaparecer em sua pr�pria imagina��o. � assim que me pareceu por um tempo. Agora, estou quase me encontrando novamente. (Estad�o Conte�do)
(foto: Companhia das Letras/Divulga��o)
QUICHOTTE
• Salman Rushdie
• Tradu��o: Jorio Dauster
• Companhia das Letras
• 520 p�ginas
• Pre�o: R$ 89,90 e R$ 39,90 (e-book)
receba nossa newsletter
Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor