
Vinte anos se passaram desde a estreia de “Veneza”, pe�a do argentino Jorge Accame dirigida por Miguel Falabella. Mas a cena do barco, sob a luz da Lua, nunca foi t�o atual para nos lembrar da import�ncia do sonho. Especialmente em dias t�o amargos.
Em 2001, no Grande Teatro do Pal�cio das Artes lotado, o p�blico n�o despregou os olhos de Gringa, a cafetina cega obcecada por ir � It�lia reencontrar o grande amor de sua vida. E ela foi mesmo, com a ajuda das prostitutas de um bordel miser�vel. Quando surgiu o barco com Gringa e os amigos, a encena��o de Falabella revelou a m�gica do teatro em transformar sonho em realidade.
Em 2021, a pandemia sufoca o mundo. E ressurge Gringa para novamente provar que o sonho n�o pode morrer, por pior que seja o cen�rio. “Veneza”, o filme, �, sobretudo, a prova do valor da perseveran�a nestes tempos cercados de trag�dia.
''A gente est� sendo t�o massacrado, � t�o do�do. A briga em que a gente est� agora de resist�ncia � dolorosa''
Du Moscovis, ator
PERCAL�OS
Miguel Falabella sempre percebeu que a hist�ria de Gringa renderia um belo filme. O ator e diretor s� n�o contava com os percal�os que enfrentaria at� a estreia de seu longa-metragem, que chegou esta semana a cinemas que j� reabriram as portas – em BH, as salas permanecem fechadas.A pandemia atrasou em quase um ano a chegada de “Veneza” � tela. Na �ltima hora, com as loca��es no Rio de Janeiro j� totalmente definidas, a produ��o foi transferida para o Uruguai. Musa de filmes importantes de Pedro Almod�var, a atriz espanhola Carmen Maura, que faria Gringa na vers�o cinematogr�fica de “Veneza”, n�o p�de embarcar para o Brasil. Havia contraindica��o para que ela, de 75 anos, tomasse a vacina contra a febre amarela. Foi aquele corre-corre.
Em Montevid�u, uma tempestade el�trica, no meio das filmagens, destruiu a lona do circo de fam�lia uruguaia que servia de cen�rio essencial para a hist�ria. Levantar dinheiro para bancar a produ��o foi outra luta. Quando Miguel Falabella explicava a poss�veis investidores que n�o se tratava de com�dia, n�o lhe davam aten��o.
“Nunca me coloquei em uma prateleira, mas as pessoas t�m tend�ncia a isso”, comentou o ator e diretor em entrevista coletiva concedida esta semana, via YouTube.
O or�amento apertado permitiu apenas 28 dias de filmagens – tr�s deles em Veneza, na It�lia. Mas deu certo. L� se reuniram Gringa, Rita e Tonho. “Sabia que far�amos bacana. Tive grandes parceiros”, afirmou o ator e cineasta. O segundo longa de Falabella estreia 13 anos depois de “Polaroides urbanas”, adapta��o de “Como encher um biqu�ni selvagem”, pe�a escrita por ele.
Al�m de Carmen Maura, o elenco de “Veneza” conta com Dira Paes (Rita), Du Moscovis (Tonho), Danielle Winits (Jerusa), Caio Manhete (J�lio), Roney Villela (pai de J�lio) e Andr� Mattos (Mestre). Na edi��o de 2019 do Festival de Cinema de Gramado, Carol Castro recebeu o Kikito de melhor atriz coadjuvante por sua atua��o como Madalena.
Trabalhar com Carmen Maura foi a realiza��o de um sonho para o elenco brasileiro. Dira Paes ficou admirada com a disponibilidade e a disposi��o da atriz espanhola. Mas, sobretudo, chamou a aten��o dela a paix�o � primeira vista entre Carmen e Miguel. “A primeira leitura foi m�gica. Era como se j� estiv�ssemos juntos h� um m�s”, comentou Dira.
Para conseguir o tom exato do portunhol falado pela personagem, Carmen n�o fez por menos. Foi aluna extremamente dedicada. “O portugu�s era dif�cil para ela, que ficava treinando, treinado, treinando no camarim”, revelou Miguel.
�nico ator do filme que assistiu � pe�a “Veneza”, Du Moscovis se lembra at� hoje daquela sess�o nos anos 2000, no Shopping da G�vea, no Rio de Janeiro. “Uma montagem linda com dona Laura (Cardoso)”, contou.
Falando direto de Montevid�u, onde grava novo trabalho tr�s anos depois das filmagens de “Veneza”, Du n�o escondeu a saudade da trupe. Revelou que na conviv�ncia com colegas argentinos de v�rias gera��es percebeu a import�ncia que eles d�o ao texto.
Moscovis considera a adapta��o de Miguel Falabella o ponto alto do longa-metragem. Levar textos do teatro para a tela sempre traz o receio de que o universo teatral n�o atinja o mesmo lugar no cinema, pondera. “Os c�digos art�sticos s�o outros e a disponibilidade do p�blico tamb�m � outra. Mas quando recebi a adapta��o, fiquei encantado”, elogiou.

''A nossa miss�o � trazer sonhos para as pessoas. Como j� dizia o grande poeta Quintana, eles passar�o, n�s passarinhos''
Miguel Falabella, ator e diretor
CHORO
Durante a entrevista, Du se emocionou ao comentar a luta do artista brasileiro para chegar ao p�blico. N�o conteve as l�grimas ao se referir aos ataques direcionados � categoria, que v� os meios de sobreviv�ncia minguarem, situa��o agravada pela pandemia.“A gente est� sendo t�o massacrado, � t�o do�do. A briga em que a gente est� agora de resist�ncia � dolorosa. A gente que � artista tem compreens�o da dificuldade para sobreviver, para concretizar nossas obras e cren�as art�sticas”, desabafou.
Dira Paes afirmou que o momento � ainda mais dif�cil por causa da impossibilidade de sonhar. “Parece que agora nossa consci�ncia est� voltada para defender direitos b�sicos. O sonho parece que fica longe. Este filme vem banhar esse lugar. Trazer a unidade para a gente se permitir novamente. N�o para sermos a Rita, mas Gringa”, disse. Dessa forma, Dira comparou sua personagem, que n�o sabe sonhar, � cafetina cega que a mis�ria n�o impediu de chegar a Veneza.
“N�o temos dinheiro sobrando, n�o roubamos dinheiro de ningu�m. Somos honrados”, emendou Moscovis, referindo-se aos sucessivos ataques de autoridades federais aos artistas e �s leis de patroc�nio cultural. “Fazemos (arte) para a gente e para o p�blico, para levar o sonho de possibilidade, da esperan�a de beleza. O sonho e o desejo da Gringa s�o os mesmos nossos”, afirmou o ator
Buscando tranquilizar os colegas, Falabella garantiu: “Isso tamb�m passar�”. Aos 64 anos, ele era o �nico dos integrantes da trupe reunidos na coletiva que vivenciou a barra-pesada da ditadura militar. “Nos ensaios para a censura, os espet�culos eram cortados, mutilados, lev�vamos duras nos hot�is. Sobrevivemos a isso tudo.”
''O sonho parece que fica longe. Este filme vem banhar esse lugar''
Dira Paes, atriz
�DIO
Miguel Falabella disse aos colegas que aprendeu a n�o receber �dio. “O presente que � dado e voc� n�o aceita fica com a pessoa. A gente continuar� fazendo. A nossa miss�o � trazer sonhos para as pessoas. Como j� dizia o grande poeta (M�rio) Quintana, eles passar�o, n�s passarinhos.”Em v�deo gravado no set de “Veneza”, Carmen Maura deixou seu recado: “Todas as vezes que venho para a Am�rica Latina acontecem coisas diferentes. �, de fato, um filme muito especial. N�o posso obrigar ningu�m a ir ao cinema, mas se eu fosse voc�, iria”. Em meados dos anos 1990, a estrela espanhola esteve em Belo Horizonte, onde assistiu � pe�a “P�rola”, de Mauro Rasi.