Raul Seixas em sess�o fotogr�fica para o ''Estado de Minas'', em 1981 (foto: Kao Martins/Arquivo EM)
Um dos ba�s mais bem guardados de todos os ba�s deixados por Raul Seixas (1945-1989), as mem�rias de Kika Seixas, casada com o artista baiano entre 1979 e 1984 e com quem teve a filha Vivian Seixas, renderam um importante livro aos f�s e pesquisadores da m�sica brasileira.
Apenas Kika pode falar com propriedade e emo��o, para al�m de documentos, entrevistas e imagens nas quais outras biografias se baseiam, dos instantes �ntimos de gl�rias e das muitas quedas de Raul, uma das personalidades mais complexas e desafiadoras do pop brasileiro, o ser que encerrou a mais perfeita tradu��o do esp�rito rock and roll em seus limites e entregas desde que os primeiros roqueiros come�aram a surgir. Ningu�m foi mais longe nisso por aqui do que Raul Seixas, conforme as mem�rias de Kika refor�am.
Antes da leitura, � bom n�o cair em uma querela sem�ntica. “Coisas do cora��o”, o nome do livro, �, antes de ser uma nova biografia de Raul, uma autobiografia de Kika Seixas. Claro que as duas hist�rias se entrela�am e correm juntas, mas a narrativa em primeira pessoa feita por Kika, em parceria e com ajuda no texto, apura��o e organiza��o de Toninho Buda, a torna mais �ntima, dram�tica e sem o distanciamento diplom�tico que as biografias precisam ter de seus biografados.
Existem ali tamb�m os documentos e inser��es de reportagens sobre Raul, mas, a partir do instante em que o m�sico passa sobretudo a beber mais e a sentir os sinais de uma deteriora��o do corpo e da mente, o livro se torna corajosamente angustiante.
COCA�NA
A eros�o da figura de Raul Seixas pela a��o da coca�na e do �lcool consumidos em doses incessantes n�o � uma novidade, mas a for�a que esses epis�dios ganham ao ser contados por quem viveu a seu lado com uma filha pequena � cortante.
O texto n�o tem os subterf�gios do humor que Rita Lee, por exemplo, consegue imprimir magistralmente � sua biografia. Kika e Toninho narram tudo, mesmo os epis�dios da inf�ncia do roqueiro, com a tens�o do que est� por vir. Depois de narrar o epis�dio de 1982, no qual Raul se tornou suspeito de n�o ser Raul para cerca de 300 f�s que assistiam ao seu show em Caieiras – uma cinematogr�fica passagem em que, de t�o b�bado, Raul, amea�ado de espancamento, acabou sendo conduzido � delegacia e preso, at� provar que era ele mesmo –, Kika exp�e suas impress�es devastadoras, pela primeira vez.
"Essas situa��es complicadas, como esse epis�dio de Caieiras, s� me deram mais certeza de que ele estava bebendo descontroladamente e sem condi��es de administrar situa��es e conflitos. N�o conseguia se apresentar de forma minimamente decente: sa�a do compasso, deixava os m�sicos desorientados e isso transparecia para o p�blico e comprometia tudo."
Algumas linhas � frente, ela aperta: "Raul usava a coca�na como estimulante e se sentia melhor, mas depois ficava extremamente deprimido pela falta de canaliza��o de sua criatividade, pois n�o estava gravando nem fazendo shows. Com isso, ele afundava cada vez mais no �lcool e na depress�o". At� chegar ao fato que s� os c�njuges podem relatar: "Um dia, percebi que ele se trancava no banheiro para tomar o �lcool de limpeza que eu comprava no supermercado".
PERSONAGEM
Numa conversa com a reportagem h� alguns anos, o compositor e guitarrista Roberto Menescal falou sobre o dia em que percebeu que Raul Seixas, o personagem, havia engolido o homem. Raul apontou para o c�u e perguntou se Roberto n�o estava vendo o mesmo disco voador que ele via.
O bossa-novista disse que n�o, mas percebeu que, mesmo sem estar aparentemente embriagado ou drogado, Raul acreditava seguramente na imagem de um disco voador. "Ali, percebi que o homem havia dado lugar ao personagem", disse Menescal.
Raul, assim, teria sucumbido ao pr�prio mito que viu nascer em sua aura, a partir de um determinado momento, � sua revelia? Kika conta no livro que ele se incomodava muito com as pessoas que chegavam querendo toc�-lo ou beijar sua m�o. Era, em tese, a imagem da idolatria que ele mesmo ridicularizava na ess�ncia de suas m�sicas. Mas um fato aparente � que Raul, o pai da pequena Vivian e marido de Kika, n�o conseguiu ser mais forte do que o Raul imagem e estere�tipo esponja do mais fiel conceito de roqueiro autodestrutivo que dizia respeito a muitos de seus f�s.
Quando esse Raul existia da porta de casa para fora, as cenas e causos que protagonizava poderiam at� alimentar um anedot�rio delicioso de ser narrado. O problema era quando estava diante de suas duas meninas, Kika e Vivian. "Eu ainda tenho vontade de chorar quando me lembro", diz Kika. "A gente foi se afastando, ele foi se afastando."
O roqueiro baiano em seu �ltimo show ao lado de Marcelo Nova, a quem chamava de %u201CMarceleza%u201D
(foto: Mila Petrillo/CB Press)
F�BULA
Uma hist�ria linda de pai e filha, aparentemente corriqueira mas t�o singela, conta do dia em que o peixinho de Vivian morreu no aqu�rio da casa. Para que ela n�o ficasse triste, Raul criou uma f�bula fascinante, que terminava com a m�e do peixinho vindo busc�-lo enquanto Vivian dormia. Esse era o pai Raul, at� que as coisas come�aram a mudar.
"Era como se a bebida trouxesse uma esp�cie de outro Raul, o personagem. Ele voltava para casa e j� n�o era mais aquele homem amoroso. O palco queria isso dele. Quando vi que n�o teria mais jeito, eu fui embora." Raul representava personagens mesmo diante de especialistas viabilizados por Kika para que ele pudesse se tratar. "Ele entrava no consult�rio diante de um ou dois m�dicos e n�o se abria, n�o falava, n�o aceitava o alcoolismo. Um dia, uma m�dica homeopata me disse: ‘Ele n�o fala, est� sempre representando’."
Kika fala do quanto o roqueiro tamb�m baiano Marcelo Nova, do Camisa de V�nus, foi importante na fase final de Raul, levando-o para gravar o elogiado �lbum “A panela do diabo”, lan�ado em 1989. Ao ser visto ao lado de um Raul j� bastante debilitado � �poca, indo cantar at� no “Doming�o do Faust�o”, Marcelo foi acusado por parte dos f�s de ser uma esp�cie de aproveitador.
"Foi um enorme erro duvidar de Marcelo Nova. Ele colocou o Raul de volta ao palco, o protegeu, tirou-o do nada e lhe deu um disco de ouro. Por isso Raul o chamava de Marceleza."
Um material in�dito s�o as cartas que a m�e de Raul, Maria Eug�nia, enviou para Kika. Elas estavam guardadas com a autora e trazem um conte�do comovente. Kika fala das composi��es feitas em parceria com Raul, dos traumas de inf�ncia do parceiro, de sua busca por uma pens�o para a filha Vivi, depois da separa��o do casal, e da tens�o da partilha, ap�s a morte do artista. Um livro que exp�e uma valiosa pe�a no grande quebra-cabe�a de muitas publica��es que se tornam hist�rias t�o profundas como as de Raul Seixas. (Ag�ncia Estado)
Raul e Kika Seixas foram casados entre 1979 e 1984 (foto: Abril Imagens)
“COISAS DO CORA��O”
• Kika Seixas e Toninho Buda
• Editora UBook (audiobook e f�sico)
• R$ 69,90
Megaexposi��o projetada para 2022
Kika Seixas, mesmo depois de revirar o ba� de Raul Seixas, que recebeu da m�e do artista, Maria Eug�nia, afirma que ainda h� muito a ser mostrado. Ela fala sempre da import�ncia de S�o Paulo na carreira do m�sico, onde ele realmente teria sido recebido e abra�ado como em nenhum outro canto de sua trajet�ria (a afirma��o sempre traz rusgas com f�s baianos) e da vontade de fazer uma grande homenagem ao artista na capital paulista. Sendo assim, Kika revela que a maior experi�ncia memorial�stica feita a Raul est� sendo preparada para ser realizada em S�o Paulo, em 2022.
A Raul Seixas Experience, "�nica imers�o biogr�fica na carreira do pai do rock nacional aprovada pelas herdeiras de Raul Seixas, Vivi Seixas, Scarlet Seixas e Simone Seixas", como � apresentada pelos organizadores, est� sendo programada para junho do ano que vem.
A mostra ser� montada sobre uma �rea com cerca de 900 metros quadrados, ambientes tem�ticos, m�sica, interatividade e realidade aumentada "para levar o f� a uma experi�ncia �nica, al�m, claro, de mais de 4.500 objetos pessoais catalogados originais, desde manuscritos a v�deos in�ditos, m�sica, roupas, instrumentos e muito mais para levar o p�blico � loucura".
Depois de estrear em S�o Paulo, em data e local ainda n�o divulgados por estarem em estudo, a mostra seguir� para Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e Bras�lia, antes de finalizar em Salvador.
A empresa respons�vel ser� o Grupo Tacatinta, do diretor art�stico Branco Gualberto. "A import�ncia deste tipo de evento para Raul � a de proporcionar ao p�blico uma imers�o na vida e na obra de um dos maiores artistas do Brasil, imers�o essa que vai ser contada em ordem biogr�fica, com um acervo de cerca de 4 mil pe�as, entre muitos manuscritos. Vamos tamb�m reconstruir locais (que fizeram parte da trajet�ria do m�sico). Assim, o p�blico poder� sentir como era na �poca, por exemplo, o famoso Elvis Rock Club e at� poder fazer uma viagem na nave do Plunct, Plact, Zum". (Ag�ncia Estado)
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